Lô Borges e o Rio que já não é o mesmo
O poema descreve, com singeleza e lirismo, a memória de um amor perdido

Repetidas homenagens recentemente foram prestadas a Lô Borges, artista que recentemente alçado à Dimensão Superior, legando-nos um patrimônio musical de rara riqueza. Sua obra revela uma tessitura sonora que amalgama rock, jazz, samba e ressonâncias da música brasileira mais profunda, evocando, por vezes a ancestralidade do canto indígena.
Nos idos de 1970, esse patrimônio começou a se consolidar, culminando na criação do memorável álbum Clube da Esquina, marco definitivo da música popular brasileira. O título do disco batizou também o grupo que o concebeu — Lô Borges, Milton Nascimento, Wagner Tiso, Beto Guedes, Toninho Horta, entre outros — jovens visionários que, entre Minas e o Rio de Janeiro, transformaram o modo de pensar e sentir a canção brasileira. Isso em um Rio de Janeiro vibrante, criativo, mas também que já não é o mesmo.
Ao evocar essa cidade e essa sonoridade, não posso deixar de registrar minha própria distância da dita “cidade maravilhosa” e de seus muitos significados, eu que dela sou um visitante ocasional. Não sou músico, tampouco crítico musical. Nunca vivi no Rio de Janeiro. Sou apenas um homem do interior paulista, criado em meio à modéstia das pequenas cidades e, por razões profissionais, “paulistano” por 36 anos.
Foi ali, quase por acaso, que um dia ouvi, de passagem, uma melodia que falava daquilo e de um poeta a referir-se sobre “a sonoridade que passou”. A canção me impressionou profundamente: não só a música, ao som de um violão plangente, mas o poema cantado e que narrava uma história de amor e abandono. Autor, Orestes Barbosa em “Chão de Estrelas”, seus versos imortalizados na voz de Sílvio Caldas.
O poema descreve, com singeleza e lirismo, a memória de um amor perdido e recorda o tempo em que o homem vivia com sua amada em um barraco sem trinco na porta e de telhado perfurado, por onde a luz do luar se insinuava livremente, forrando de estrelas o chão onde a mulher pisava. Imagem de uma beleza comovente, que transcende a precariedade material e transforma a pobreza em cenário de ternura e poesia. Imaginemos, então, como seria reunir em uma noite serena os integrantes do Clube da Esquina, Orestes Barbosa e Sílvio Caldas — todos partilhando a mesma mesa, o mesmo tempo, a mesma canção. Evidentemente, uma impossibilidade.
O Rio de Janeiro que abrigou essas vozes já não é o mesmo; a paisagem, os sons e os silêncios se transformaram. Ainda assim, talvez persistam em algum morro esquecido, barracos de chão batido e telhados de zinco esburacados, por onde o luar continua a entrar teimosamente — o mesmo luar que, entre estrelas e projéteis das refregas, insiste em iluminar a “cidade maravilhosa”.
Helio Silva
Advogado, Rio Preto