Filosofia de boteco
É ali, entre histórias cotidianas e risadas tímidas, que surgem os grandes temas

“Em volta desta mesa, velhos e moços... Lembrando o que já foi”. Trecho da música "Conversando no Bar", de Elis Regina.
Nada como um copo na mão, alguma mesa de bar, o tilintar de garrafas e o pano de fundo de vozes misturadas para nos fazer pensar — ou filosofar. A “filosofia de boteco” não se veste de toga nem usa citações rebuscadas: ela se veste de camiseta simples, descansa no banquinho de madeira e nasce quando começamos a pensar alto (ou quase alto) sobre a vida, enquanto o chopp ou a cerveja esquentam no copo.
No boteco cabe a liberdade de errar, de rir, de confessar sem vergonha. A profundidade mora nos “por quês?” diretos, nos silêncios entre os amigos, no abraço da madrugada. A mesa vira palco, o balcão testemunha. A filosofia acontece, simples, urgente, suave, humana.
É ali, entre histórias cotidianas e risadas tímidas, que surgem os grandes temas: “por que a gente insiste em sofrer por amor?”; “qual o objetivo dessa correria toda?”; “será que o tempo cura mesmo?”. Nada de tese formal ou capítulo de livro. Na mesa do bar, a reflexão pousa em guardanapo rabiscado, no intervalo entre um gole e outro.
E tem algo especial nessa filosofia de botequim: a liberdade. Liberdade para errar, para inventar (muito...), para acreditar (duvidando...) que as perguntas importam mais do que as respostas. No bar, não se espera que alguém tenha a verdade absoluta; até porque, se tivesse, ia cobrar o segundo copo para contar. O importante é abrir o debate, esticar a fala, fazer analogias com jogos de futebol ou séries de TV e, quem sabe, acordar no dia seguinte com aquela frase solta lembrando da noite.
Mas não pense que é só conversa fiada. No fundo, esse bate-papo reflete aquela necessidade humana de encontrar sentido, de desmontar o mundo, remasterizar os acontecimentos da semana e reorganizar o caos em pequenas epifanias. Pode ser que o universo não escute, mas a mesa escuta. E a cerveja dá seu brinde silencioso.
Outro ponto: na filosofia de boteco, somos todos iguais. Não importa se você é de terno ou chinelo, se chegou pedalando ou foi de Uber. O que vale são as perguntas sinceras: "oh, “e aí?”; "oh, me conta!”. Tudo, com atenção de quem quer ouvir. E então, o “vamos brindar”, com um sorriso de sede.
Enquanto isso, ecoa nas paredes o cheiro de petisco e de história.
E ao final da noite, quando a conta chega e um grupo segue para casa, outro talvez vá cantar no karaokê, vá para balada ou simplesmente vá sofrer de ressaca. E então, fica a sensação de que valeu. Porque, entre goles e gestos, fizemos o que a filosofia costuma pedir: olhamos para nós mesmos, para o outro, para o universo. Com leveza, sem gravidade excessiva, mas com profundidade suficiente para tocar a vida.
Da próxima vez que você estiver no boteco, olhe para a cerveja morna da quinta rodada e se permita: pergunte, escute, ria, e perceba que ali, entre copos e guardanapos, a filosofia está viva. E não exige nada além de você estar presente. Filosofando e se divertindo.
Carlos Fett
Consultor e Mentor Empresarial, Pessoal e em Franchising [email protected]