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Fetiche armamentista

O país segue exageradamente armado e cego diante de suas próprias vítimas

por João Paulo Vani
Publicado há 11 horas
João Paulo Vani -  cadeira 7 (Divulgação)
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João Paulo Vani - cadeira 7 (Divulgação)
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29 de outubro de 2025. O Brasil acordou perplexo. A operação policial realizada nos complexos da Penha e do Alemão, no Rio de Janeiro, já soma 132 mortos, segundo a Comissão de Direitos Humanos do Senado — número superior ao do Massacre do Carandiru, quando 111 presos desarmados foram mortos durante intervenção da Polícia Militar de São Paulo em 1992.

No Rio de Janeiro, corpos foram encontrados com sinais de extrema violência e enfileirados por moradores na Praça São Lucas, em um cenário descrito por testemunhas e por organizações internacionais como de grave violação aos direitos humanos. O próprio Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos classificou o episódio como um atentado às normas internacionais e solicitou investigação independente.

O governador do Rio, Cláudio Castro, entretanto, classificou a operação como um “sucesso”, mesmo diante da morte de quatro policiais. Esse contraste entre discurso oficial e o que se propaga pela imprensa expõe a falência de um modelo de segurança pública que confunde ordem com vingança, cuja baliza é o número de corpos.

A mesma lógica se repete aqui no sertão de São José, quando um segurança privado, investigado por porte ilegal de arma, é apontado pela polícia como o autor do disparo que atingiu e matou um empresário que tentava apartar uma briga. O indivíduo, que na confusão se apresentou como “policial militar”, poderá responder também por falsidade ideológica.

O fenômeno, para além da esfera policial, é também simbólico e cultural. Freud apontou, em Totem e Tabu (1913), a figura do “pai autoritário” como arquétipo do poder que inspira obediência e medo. O fetiche da farda reflete essa identificação inconsciente com o militarismo: a crença de que a força substitui a razão e de que o revólver é extensão da autoridade perdida. Na esfera coletiva, o país revive o delírio do “pai repressivo”, travestido de herói em tempos de autoritarismo; de nacionalismo propagado como patriotismo.

Por trás desse culto à arma, há um duplo colapso: o do Estado, que delega o monopólio da violência a seguranças privados e milicianos; e o da ética, que transforma o medo em método de governo.

Entre a promessa de segurança e o espetáculo da força, o Brasil se torna refém da própria brutalidade no exato momento em que o mundo tenta reduzir pela metade as mortes violentas até 2030, conforme o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 16.1 da ONU.

O país segue exageradamente armado e cego diante de suas próprias vítimas, preso ao mesmo mito primitivo: o de que a força bruta pode proteger o corpo social, quando, na verdade, é ela quem o devora.

João Paulo Vani

Presidente da Academia Brasileira de Escritores (Abresc), é pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação da USP.