Diário da Região
Artigo

Estados Unidos do Saara

A ambição de Muammar Gaddafi esbarrou nos desafios contemporâneos do Norte da África

por Tiago Cesar Miguel Kapp
Publicado há 3 horasAtualizado há 3 horas
Tiago Cesar Miguel Kapp (Divulgação)
Galeria
Tiago Cesar Miguel Kapp (Divulgação)
Ouvir matéria

Ao longo de mais de 4 décadas no poder, Muammar Gaddafi defendeu não apenas o pan-africanismo e os “Estados Unidos da África”, mas também um projeto menos conhecido: os chamados “Estados Unidos do Saara”, que visava unir politicamente e militarmente os países do Saara e do Sahel para formar um bloco africano soberano e livre da influência externa, especialmente europeia.

A partir dos anos 1970, Gaddafi buscou formar um núcleo de integração entre países do Saara e do Sahel — envolvendo Líbia e diversos vizinhos — articulando alianças com Estados e povos nômades para superar fronteiras coloniais e transformar o deserto em um corredor estratégico de união política, econômica e cultural.

O plano de Gaddafi buscava unir esses países sob uma confederação regional que se fortaleceria militarmente e economicamente. A proposta incluía a criação de uma moeda africana autônoma, como alternativa ao Franco CFA. Gaddafi defendia que a independência do continente só seria possível com soberania monetária e um banco central africano. Além disso, apostava na valorização das culturas saarianas e sahelianas, na circulação livre de caravanas e povos nômades, e no fortalecimento de uma identidade africana do deserto, capaz de se sobrepor às fronteiras nacionais.

O projeto enfrentou forte resistência: países africanos desconfiavam da liderança de Gaddafi e temiam uma hegemonia Líbia, enquanto potências como França e EUA o viam como ameaça a seus interesses estratégicos e econômicos em uma região rica em recursos e de importância geopolítica.

A reação internacional incluiu pressões diplomáticas, sanções e disputas indiretas. A França, potência com forte presença militar e econômica na região, atuou para conter a expansão da influência Líbia. Um dos episódios mais tensos foi o conflito entre Líbia e Chade, que resultou em uma série de guerras entre as décadas de 1970 e 1980. Ao mesmo tempo, Gaddafi financiou movimentos tuaregues no Mali e no Níger, alimentando rebeliões que os governos locais interpretaram como interferência estrangeira. O projeto começava a se tornar mais associado à instabilidade do que à união.

Nos anos 2000, Gaddafi tentou reposicionar-se e fortalecer a integração africana, mas sua queda em 2011 interrompeu esse projeto; ainda assim, parte de suas ideias reaparece com a Aliança dos Estados do Sahel, o debate sobre o fim do Franco CFA e o retorno político de seu filho, enquanto o conflito do Saara Ocidental mantém a região no centro das disputas geopolíticas.

Embora o projeto dos “Estados Unidos do Saara” não tenha se concretizado, seus elementos ressurgem em novas alianças e movimentos de autonomia no Sahel; resta saber agora se esse impulso resultará em uma verdadeira reconfiguração geopolítica ou se ficará como mais um sonho inconcluso da história africana.

Tiago Cesar Miguel Kapp

Empresário e estudante universitário – Olímpia.