Diário da Região

Cultura, Estado e o equívoco da falsa autonomia

A cultura pode sobreviver sem o Estado. A memória coletiva, não

por João Paulo Vani
Publicado há 5 horas
João Paulo Vani -  cadeira 7 (Divulgação)
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João Paulo Vani - cadeira 7 (Divulgação)
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O argumento recentemente exposto neste espaço de que “a cultura não nasce de verba pública” é verdadeiro, mas incompleto. A cultura, enquanto expressão simbólica de um povo, antecede o Estado e sobrevive a ele. O erro começa quando essa constatação é usada para negar a necessidade de políticas culturais. Confunde-se a origem da cultura com as condições de sua preservação, circulação e acesso público.

Muitas das expressões citadas como exemplos de cultura “autônoma”, como o samba, o funk ou as religiões de matriz africana, não somente nasceram sem apoio estatal; nasceram contra o Estado. Foram criminalizadas e silenciadas. A ausência de financiamento não foi sinal de liberdade, mas de exclusão. O reconhecimento da cultura como direito — consagrado pela Constituição de 1988 — surgiu justamente para enfrentar essa desigualdade histórica.

Criar uma oposição rígida entre “cultura viva” e “setor cultural financiado” é um falso antagonismo. Políticas culturais não existem para fabricar cultura, mas para preservar memória, garantir acesso e reduzir assimetrias. Museus, arquivos e bibliotecas não produzem bens privados; produzem patrimônio coletivo. Quando abandonados, a perda é definitiva.

Os efeitos dessa visão aparecem concretamente na gestão pública. O abandono do Museu do Silva, artista com reconhecimento nacional e presença em acervos como o do MASP, e a falta de acesso público ao acervo Dinorath do Valle, uma das mais importantes referências intelectuais regionais, não são problemas pontuais. Somam-se à inércia da Secretaria Municipal de Cultura diante da deterioração de equipamentos e da ausência de políticas efetivas de preservação. No campo cultural, a omissão é uma forma silenciosa de apagamento.

É legítimo afirmar que governar é escolher e que o orçamento é limitado. Mas o critério dessas escolhas importa. Tratar a cultura como área sempre sacrificável revela uma concepção que a reduz a ornamento. Na prática, isso transfere a preservação da memória para o mercado ou para o esquecimento.

A cultura pode sobreviver sem o Estado. A memória coletiva, não. Uma cidade que abandona seus acervos, museus e referências simbólicas não economiza recursos: empobrece seu espaço público e rompe sua continuidade histórica. Defender a cultura como direito não é luxo; é condição para uma democracia que reconhece a si mesma.

João Paulo Vani

Presidente da Academia Brasileira de Escritores (Abresc), é pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação da USP.