Aurora da minha infância
A infância é uma estação que a gente nunca mais alcança, mas continua dentro da gente

Oh! que saudades que eu tenho da aurora da minha vida... Era um tempo em que o mundo cabia num terreiro de chão batido, onde o galo cantava anunciando o dia e a fumaça do fogão a lenha desenhava no ar os primeiros sonhos do dia. A infância, naquele tempo, não precisava de brinquedos comprados; bastava um galho de forquilha que virava estilingue, bucha verde, virava vaquinha e a liberdade de correr pelos caminhos sem hora pra voltar.
Lembro-me das tardes fagueiras, quando o sol se punha manso atrás do espigão e as sombras das bananeiras se alongavam sobre o quintal. A gente se reunia pra ouvir causos contados pelo vô — histórias de lobisomem, mula-sem-cabeça e assombração de encruzilhada. Cada estalo do mato fazia o coração bater mais forte, mas ninguém arredava o pé. O medo, naquele tempo, era divertido e servia só pra reforçar a união entre as crianças que se encolhiam em volta do fogo, enquanto a lenha estalava feito foguetinho de São João.
Debaixo dos laranjais, a meninada inventava castelos e reinos. O perfume da flor de laranja se misturava ao cheiro da terra úmida, e parecia que o mundo inteiro era um quintal. Havia tempo pra tudo: pra pescar lambari no corguinho, pra colher jabuticaba no dente, pra subir no pé de goiaba e ver o horizonte lá do alto, acreditando que a vida seria sempre assim — simples, doce e infinita.
Quase sempre, o terreiro de terra batida virava campo de futebol. Bola de meia, traves de chinelo e a torcida das mães gritando pra ninguém se machucar. Depois vinha o cheiro do almoço, aquele arroz soltinho, o feijão temperado com alho e a galinha caipira que dava gosto de viver. Era a fartura dos que tinham pouco, mas sabiam partilhar.
Hoje, quando fecho os olhos, ainda escuto o ranger da carroça no caminho de volta, o latido do cachorro na porteira e o eco das risadas que o tempo não conseguiu calar. A infância é uma estação que a gente nunca mais alcança, mas continua morando dentro da gente, feito um retrato antigo guardado no fundo do peito. E esse passado que teima em não passar? Que, quando menos se espera, lá estamos nós, sempre voltando. Principalmente quando os dias não são dos melhores. Ah, como eu queria de novo, deitar no colo de minha mãe e, ouvir dela conselhos para aquietar minh’alma.
Casimiro de Abreu tinha razão: os anos não trazem mais aqueles dias. Mas talvez tragam a lembrança — e é ela que mantém viva a chama daquele tempo em que bastava o sol nascer pra gente ser feliz, acreditando que a vida, como as manhãs da roça, sempre recomeçaria com cheiro de mato e esperança no coração.
Jocelino Soares
Artista plástico, pós-graduado em Arte-educação, membro da Academia Rio-pretense de Letras e Cultura.