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ARTIGO

As velhas meias do menino que fui

O trenó nunca passaria sobre o nosso telhado. As telhas eram antigas, humildes demais

por Jocelino Soares
Publicado há 4 horasAtualizado há 2 horas
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É Natal — diz o menino dentro de mim.
Toda vez que essa palavra chega, ele aparece. Não bate na porta. Não pede licença. Apenas se senta ao meu lado, com as pernas curtas balançando no ar, e me encara como quem quer saber se eu ainda me lembro.

— O senhor se lembra das nossas meias?

Lembro, sim. Como poderia esquecer? E ele sabe disso.
Vejo-o outra vez, sentado na beira daquela cama simples, os pés descalços sentindo o frio do chão, segurando um par de meias velhas como quem segura o próprio destino. Eram gastas, ele me lembra. Gastas de correr estrada de terra, de chutar poeira, de enfrentar madrugada sem reclamação. Tinham remendos tortos, costurados pelas mãos cansadas da mãe - mãos que doíam, mas não desistiam.

— Elas não eram bonitas, né? - ele pergunta, meio sem graça.

— Não — respondo -, mas eram limpas. E eram nossas.

Ele sorri, porque sabe. Naquela casa, a pobreza nunca venceu. Era enfrentada todos os dias com sabão, com silêncio e com dignidade.

— Eu colocava as meias certinhas, lembra? - diz ele.

Lembro. Com cuidado de altar.

Não era fé completa, era esperança miúda. Daquelas que cabem dentro de um menino. Meias no lugar, pensamento quieto, oração curta. Diziam que o bom velhinho passava.

— Mas eu já desconfiava… - ele confessa, baixinho.

Eu sei. Aquele menino já era mais sábio do que parecia.

O trenó nunca passaria sobre o nosso telhado. As telhas eram antigas, empenadas, humildes demais para sustentar fantasia. O velhinho preferia outros telhados: altos, largos, cheios de riso e embrulho colorido. Telhados dos patrões.

— Na nossa casa vinha só o Natal - ele diz.

— E isso já era tudo - respondo agora, homem feito.

Enquanto os foguetes estouravam lá fora, anunciando riquezas que não eram nossas, dentro da casa morava um silêncio sagrado. Um silêncio cheio. Cheiro de café recém-passado. Bolo simples, feito “com o que tinha”. Roupa lavada secando no vento.

O pai, de mãos grossas, furando a tampinha do guaraná caçulinha com cuidado cerimonioso. A mãe, indo e vindo, fingindo força, com os olhos marejados de um cansaço que não era tristeza. Era amor cru. Amor inteiro.

— Eu não pedia muita coisa - o menino me lembra.

— Eu sei - digo.

— Só queria um sinal.

Uma fruta. Um doce. Um papel de seda dizendo: você não foi esquecido. O presente não vinha. Mas o Natal vinha. Sempre vinha.

Hoje, sou eu quem olha para ele. Vejo vitrines acesas, gente apressada, o mundo gritando consumo. E então volto para aquele quarto, para aquelas meias vazias, para aquele menino que me ensinou tudo sem saber.

— O senhor ficou rico? - ele me pergunta.

Penso um pouco antes de responder.

— Fiquei, sim.

— Em quê?

— Em memória. Em amor. Em silêncio bom.

Ele sorri. E some devagar, como sempre faz. Porque esse amor — eu aprendi com ele — nenhum velhinho do mundo carrega num saco. Não precisa de chaminé nem de anúncio. Mora na lembrança.
E enquanto eu me lembrar do menino que fui, o Natal continuará chegando — simples, inteiro e verdadeiro.

Jocelino Soares

Artista plástico, pós-graduado em Arte e Educação. Membro da Academia Rio Pretense de Letras e Cultura.