Aqui não tem mulher de malandro
A violência física, com sorte, cicatriza. A psicológica não cura nunca

“Mulher que gosta de apanhar”. “Tem mulher que merece”… Frases assim não são inofensivas. São armas. Funcionam como álibi da violência e como chicote simbólico que culpa e cala as vítimas.
Recentemente, uma mulher foi espancada com 61 socos pelo companheiro. Antes que essa cena saísse das manchetes, outra foi assassinada com 140 facadas. Crimes dentro de casa — espaço que o senso comum insiste em chamar de “sagrado”. Mas não são casos isolados: é o retrato do nosso tratamento às mulheres, da banalização da violência no dia a dia.
Enquanto corpos tombam, a mídia ainda ressuscita o bordão da “mulher de malandro”. Esse discurso não é só leviano — é criminoso. Quando a imprensa relativiza, reforça vizinhos que dizem “ela voltou porque gosta”, familiares que murmuram “mulher que não apanha não aprende” e um Estado que fecha os olhos, culpando quem é agredida em vez de quem agride, tornando o lar em espaço de terror.
Em 2024, o Brasil registrou 1.492 feminicídios — quatro por dia — e 87.545 estupros, mais da metade contra mulheres negras, crianças e adolescentes. 80% dos feminicídios foram cometidos por companheiros ou ex, 64% dentro de casa. Sim, dentro do lar. Números tão absurdos deveriam estampar os jornais, mas viram estatística fria porque a cultura os embrulha em desculpas: “ela provocou”, “ficou porque quis”, “ela gosta”.
A violência física, com sorte, cicatriza. A psicológica não cura nunca. Ela se infiltra na mente, corrói a autoestima, se instala como hematoma invisível e molda medo, silêncio e submissão. A Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio são marcos legais importantes, mas nenhuma protege uma mulher quando a sociedade a incrimina, a mídia a ridiculariza e o Estado a abandona. O que falta não é lei: é coragem coletiva para desmontar provérbios que justificam até a morte.
Ninguém “gosta de apanhar”. Gostar, nós gostamos é de viver sem medo, com dignidade, sabendo que quatro mulheres não serão mortas amanhã só por existir. De ver programas televisivos que se indignem de verdade. De viver em um Estado que cumpra seu dever e não terceirize a culpa.
Ser atingida pela violência do outro não é escolha. A vítima não é culpada. Nunca! A culpa é de outros, mas não dela.
Erika Bismarchi
É mestra em Políticas Públicas, jornalista, escritora e assistente social. Idealizadora da Maria Violeta. Voluntária no Coletivo Maria Livre. Membra do Coletivo Mulheres na Política.