Diário da Região
PARTE DE MIM

Como funcionam as doações e transplantes de órgãos entre vivos

Procedimento de alta complexidade, o transplante intervivos é uma alternativa para devolver qualidade de vida ao paciente

por Joseane Teixeira
Publicado em 26/02/2022 às 19:33Atualizado em 27/02/2022 às 07:47
Luis Paulo Covizzi doou parte do figado para Isabella, a Belinha (Johnny Torres 26/02/2022)
Luis Paulo Covizzi doou parte do figado para Isabella, a Belinha (Johnny Torres 26/02/2022)
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“Os médicos são muito transparentes. Eles apresentam todos os riscos. Foi quando eu tive a dimensão do tamanho da cirurgia. A pessoa tem que estar consciente sobre tudo o que ela vai enfrentar. Por outro lado, quando você pensa que pode salvar uma vida, a solidariedade fala mais alto”.

O relato é do analista de sistemas Luis Paulo Dompieri Covizzi, 34 anos, que, aos 27 anos, aceitou doar parte do fígado para uma criança de 3 anos, filha de um amigo.

A segunda reportagem da série “Doação de Vida” aborda a doação de órgãos intervivos e traz informações sobre quais órgãos é possível captar em doadores vivos e quais são as regras para o transplante.

Diretor do Centro de Transplantes do Hospital de Base de Rio Preto, o nefrologista Mário Abbud Filho explica que rins e pulmões, por serem órgãos duplos, podem ter um deles retirado para doação. Já no transplante de fígado é cortado apenas uma parte do órgão, que se regenera conforme os anos e retoma 100% da capacidade de funcionamento.

O procedimento é autorizado em situações de extrema urgência e na impossibilidade de se aguardar um doador compatível pela Organização de Procura de Órgãos (OPO), que regulamenta a fila de espera.

O Ministério da Saúde, por meio do Sistema Nacional de Transplantes (SNT), determina que o doador tem que ser parente consanguíneo de até 4º grau com o receptor. Fora do parentesco, inclui-se apenas filhos adotivos e cônjuge. O critério primordial para o transplante é a compatibilidade sanguínea.

Quando há grande risco de morte e não há nenhum familiar próximo compatível com o paciente, a Justiça pode autorizar a doação de terceiro, desde que comprovado que não há nenhum interesse comercial no procedimento.

Foi o caso de Luís Carlos, que preenchia todos os requisitos necessários para ser doador de fígado para a pequena Isabella Vitória Mendonça Duarte, a Belinha. Em 2015, a criança de 3 anos recebeu o diagnóstico de hepatite autoimune, doença rara com alto grau de mortalidade. O estado de saúde dela piorou rapidamente e a menina precisou ser levada às pressas para o Hospital das Clínicas, em São Paulo.

“Não tínhamos estrutura e experiência necessária para operar uma criança de baixo peso”, lembra o hepatologista do Hospital de Base, Renato Silva, que diagnosticou a pequena.

Apesar da possibilidade do transplante em vida, os dois especialistas ouvidos pela reportagem disseram que a prática tem sido cada vez mais evitada no meio médico. E a razão é a preocupação com o comércio e tráfico de órgãos.

“No HB não realizamos mais transplante entre vivos, mesmo entre parentes. Salvo raríssimas exceções. De pai para filho, sim. Nunca de filho para pai. Não podemos prever se aquele jovem, no futuro, terá um problema de saúde no qual aquele órgão seria essencial”, explicou o nefrologista Abbud Filho.

Processo complexo

O médico disse que a Funfarme criou uma comissão de ética médica para avaliar os pedidos de transplante entre vivos, que passa por entrevista com o doador. Se houver qualquer dúvida sobre a intenção, o procedimento é negado. Ainda que entre parentes.

“Há casos em que a família pressiona o doador compatível. Outra dúvida sanada pela comissão é a possibilidade da venda de órgãos. Um fato curioso no Brasil: é comum ver funcionário querendo doar órgãos para o patrão. Mas nunca o contrário. É solidariedade ou necessidade?”, questionou.

Outro fator que desestimula o procedimento é o alto número de potenciais doadores, diagnosticados com morte cerebral.

Para se ter uma ideia, no ano passado, 7.933 pacientes se enquadravam no critério de doação, mas somente 2.003 tiveram os órgãos captados.

“A diferença não se deve apenas à recusa da família, como muitos pensam. Perdemos muitos doadores por causa de hospitais não equipados. Por morte cerebral não diagnosticada. Por falhas na manutenção dos aparelhos de UTI. Porque o coração parou no meio do processo. O que a gente precisa é aperfeiçoar os sistemas de saúde. Com tanto paciente morto, não faz sentido a gente tirar órgãos de pessoas vivas”, disse.

Outra questão que impede o aumento no número de transplantes é o repasse de verbas que, segundo Abbud, não cobre todos os custos do procedimento. “Paga-se somente a operação. Mas os custos de intercorrências do pós-operatório ficam por conta do hospital. Por isso são poucos os que realizam transplantes”, finalizou.

O hepatologista Renato Silva afirmou que o HB realizou apenas três transplantes intervivos de fígado em toda a história. “O órgão recebe um litro e meio de sangue por minuto. É o maior reservatório de sangue do corpo humano. A cirurgia é complexa, com probabilidade de morte em 5% dos casos. Parece pouco, mas estamos falando de pacientes saudáveis. Eu opero tranquilamente um paciente doente. Quando o transplante é a única saída para salvar a vida dele. Mas não posso conceber a ideia de perder uma pessoa sadia, o doador vivo”, afirmou.

Gesto nobre que salva

Foi para salvar a vida da filha de um professor que, em 2009, a jornalista Priscila Tinti, de Ilha Solteira, cadastrou uma amostra de sangue para sequenciamento genético, na esperança de que a medula óssea fosse compatível com a criança. Infelizmente não deu tempo, mas os dados dela permaneceram cadastrados no banco de dados e, quatro anos depois, ela recebeu um telefonema do Redome (Registro Nacional de Doadores Voluntários de Medula Óssea). A medula dela, que tinha 27 anos, salvaria a vida de uma mulher de 30, que enfrentava a leucemia há três anos. O procedimento foi realizado no Hospital das Clínicas, da Usp, em São Paulo.

“Foram 40 minutos de cirurgia para punção na bacia. Permaneci algumas horas em observação e, no dia seguinte, recebi alta”, lembra.

Também para evitar comercialização de medula, o Redome só permite o contato entre doador e receptor 1 ano e meio após o procedimento. Mas Priscila não conteve a curiosidade e leu o nome da paciente em uma ficha médica. “Nos conectamos pelas redes sociais e a alegria foi enorme. Como mãe, me emocionei por salvar a vida de outra mãe. Ela tinha dois filhos de 10 anos, gêmeos. Ganhei outra família”, lembra.

Ao contrário da doação de órgãos em vida, a doação de medula é uma prática segura e muito incentivada no Brasil. Em Rio Preto, o HB realizou 316 transplantes nos dois últimos anos.

Segundo dados do Redome, há 5.475.001 doadores cadastrados no Brasil e 650 pacientes em busca de doador não aparentado. A chance de encontrar uma medula compatível é de 1 a cada 100 mil.

Tramita no Senado um projeto de lei que busca facilitar a localização de doadores de medula óssea que não tenham sido encontrados a partir dos dados do Redome.

Desde o ano passado, os hemocentros só coletam amostras de sangue de candidatos abaixo dos 35 anos.

“Houve um aprimoramento no estudo de sequenciamento genético que permitiu agilizar o processo de identificação de compatibilidade. A redução da idade permitiu que o candidato esteja disponível por mais tempo no banco de dados, já que o cidadão não aparentado só pode doar medula óssea até os 60 anos”, explicou o hematologista João Victor Piccolo.

O Ministério da Saúde informa que, em 2020 e 2021, mais de 3,9 mil pessoas vivas doaram órgãos no Brasil - fígado, rim e medula óssea -, sendo 1,9 mil no estado de São Paulo. (JT)

Final feliz para Belinha

Discreto e impressionado com a repercussão nacional do caso, é a primeira vez, após sete anos, que o analista de sistemas Luis Paulo Dompieri Covizzi revela publicamente ter sido o doador de fígado que salvou a vida de Belinha.

Em 2015, o pai da criança, Francis Muller Duarte, mobilizou uma grande campanha, que contou com o apoio da Polícia Militar, para tentar localizar uma pessoa com tipagem sanguínea ‘O’, e que fosse saudável, para doar um pedaço do fígado para a filha.

Em um mês, a menina feliz e brincalhona perdeu a vontade de comer e começou a ficar amarelada. O diagnóstico de hepatite não demorou. Mas, sem melhoras, Belinha foi internada e recebeu a sentença de uma doença rara: hepatite autoimune. Se não fosse transplantada imediatamente, não resistiria.

A corrida contra o tempo contou com o apoio de vários veículos de imprensa.

Nove pessoas que se encaixavam nos critérios exigidos se voluntariaram. Elas viajaram de van para São Paulo, onde Belinha já estava internada.

Saudável, jovem e sem vícios, Luis Paulo foi escolhido como doador ideal. “Não vou negar, tive muito medo. É uma cirurgia longa, de peito aberto. Mas tive apoio da minha família. Minha esposa, assim como eu, é cristã. Ela disse que era a minha missão. Se Jesus deu a vida para nos salvar, como cristão eu tenho que fazer o mesmo”, disse.

Luis Paulo lembra que a recuperação foi lenta e durou 60 dias. Mas hoje ele está plenamente recuperado e não faz uso de medicamentos.

Os laços de amizade com o então instrutor de academia se fortaleceram e hoje eles convivem como família. “É muito gratificante ver a Isabella com 10 anos, saudável, fora de perigo”, comemora.

Francis Muller Duarte, o pai, afirma que Luis Paulo o presentou com algo de valor incalculável. Hoje ele encabeça campanhas de doação de órgãos e usa as redes sociais para informar e fortalecer a corrente de vida. Belinha está plenamente recuperada. A garotinha toma medicação diária para evitar rejeição do órgão, mas não tem qualquer restrição alimentar, nem privações de rotina. (JT)

Saiba mais

Órgãos e tecidos que podem ser doados em vida:

  • Rim
  • Medula Óssea (se compatível, feita por meio de aspiração óssea ou coleta de sangue)
  • Fígado (apenas parte dele, em torno de 70%)
  • Pulmão (apenas parte dele, em situações excepcionais)

Para doar, é necessário:

  • Ser um cidadão juridicamente capaz
  • Estar em condições de doar o órgão ou tecido sem comprometer a saúde e aptidões vitais do doador
  • Avaliação de um médico afastando a possibilidade de existir doenças que comprometam a saúde do receptor durante e após a doação
  • Doar um dos órgãos ou tecidos que sejam duplos e não impeçam o organismo do doador de continuar funcionando
  • Ter um receptor com indicação terapêutica indispensável de transplante
  • Ser parente de até quarto grau, cônjuge ou não parente. A doação só poderá ser feita com autorização judicial (dispensada em relação à medula óssea)
  • O doador deverá autorizar, preferencialmente por escrito e diante de testemunhas, especificamente o tecido, órgão ou parte do corpo objeto da retirada

Vender é crime

  • Todo o procedimento deve ser voluntário
  • Vender órgãos ou tecidos é crime, previsto pela Lei 9.434:
  • Comprar ou vender tecidos, órgãos ou partes do corpo humano:
  • Pena - reclusão, de três a oito anos, e multa, de 200 a 360 dias-multa.
  • Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem promove, intermedeia, facilita ou aufere qualquer vantagem com a transação.

Medula

Transplantes de medula no Hospital de Base de Rio Preto

  • 2020 - 159
  • 2021 - 157

Transplantes de medula no Hospital da Criança e Maternidade de Rio Preto

  • 2020 - 20
  • 2021 - 25

Fonte: Universidade Federal do Rio de Janeiro