Silva Jobs e as letras que contam histórias
Carro de boi que trouxe a primeira máquina tipográfica para Rio Preto é símbolo de uma ferramenta que deixa marcas na história, feito as letras que se fundem no tempo

Diz a moda de Ronaldo Viola e João Carvalho que as rodas de um velho carro de boi deixaram marcas no chão...
“Num passado bem distante
Que hoje é recordação
Assim é a minha vida
Nas marcas da ilusão
Sou roda que ainda roda
Na estrada solidão”.
O meio de transporte que singrou as veredas deste sertão da Noroeste se torna, nesta linda moda caipira, a ferramenta que deixa marcas que muito mais do que caminhos, vai abrindo histórias.
As ferramentas que dão vida ao que nos cerca são assim de uma ligação estreita com as coisas simples do campo. Talvez por isso seja de tão forte simbolismo que a primeira máquina tipográfica tenha chegado por aqui exatamente em cima de um carro de boi.
Era o surgimento do Porvir, lançado em 12 de julho de 1903. Foi um tabloide semanal fundado e mantido pelo coronel Adolpho Guimarães Corrêa, um dos políticos mais influentes da época.
Consta que Corrêa comprou a máquina tipográfica em Jaboticabal. Segundo os relatos históricos, colocou o equipamento em um carro de boi e de quebra ainda ajeitou nele também o primeiro tipógrafo, Cincinato Homem. E assim deu vida ao primeiro jornal da história de Rio Preto.
Assim é possível dizer que se as rodas do velho carro, como canta o poeta caipira, deixam marcas no chão, é possível dizer também que as letras que se fundem desde o velho “chumbão”, na secular técnica de impressão tipográfica – pela qual letras fundidas em chumbo dão vida aos impressos – para também deixar marcas no tempo. Marcas que contam a história, marcas que são a história.
Conta o poeta mineiro Sergio Vaz que na época do “chumbão” um jornal de Belo Horizonte foi noticiar um grande incêndio na Praça Rui Barbosa, na área central da cidade, e teve um contratempo. Na falta de uma foto do terrível incidente, o bravo periódico publicou uma foto de Rui, o Águia de Haia, e, abaixo dela, a legenda fantástica, inacreditável, que dizia mais ou menos o seguinte: “No clichê acima, Rui Barbosa, que dá nome à praça desta capital onde ocorreu terrível sinistro”.
Clichê, segundo os dicionários, é a placa fotomecanicamente gravada em relevo sobre metal, usualmente zinco, a traço ou a meio tom, para impressão de imagem e textos por meio de prensa tipográfica.

Rio Preto conta com a sua praça Rui Barbosa, onde não se tem registro de algum incêndio e que algum jornal daqui tenha utilizado do improviso criativo do impresso de BH. Águia no quadrilátero central rio-pretense havia apenas no topo do extinto prédio do banco Comind, ao lado da casa Rignani, na Bernardino de Campos de frente para a Praça Dom José Marcondes.
A marcante escultura de pedra só não entrou em extinção junto com o imóvel graças à iniciativa do pintor primitivista José Antonio da Silva. O mestre naif mobilizou autoridades e a águia foi retirada de lá, em 1977, pelo Corpo de Bombeiros, em uma operação delicada, a 21 metros de altura, com apoio de uma escada magirus.
A peça decorativa de 300 quilos foi restaurada e teve as unhas caprichosamente pintadas de vermelho por Silva. Depois foi levada para o Centro Cultural, onde o pintor reuniu peças que ele julgava históricas e que não poderiam cair no esquecimento, vide a águia enigmática – “de asas abertas, plumagem eriçada e o pescoço voltado à direita”, como detalha o guardião da memória de Silva, o professor, pesquisador e escritor Romildo Sant’Anna – e também um carro de boi que o artista custeou do próprio bolso.
Todo esse material foi levado por ele para lá, daquele jeito único que o mestre tinha de fazer as coisas, sem esperar pelo apoio do poder público. “Fiz a mudança do carro de bois, o carroção e as esculturas utilizando-me de detentos do IPA (o antigo Instituto Penal Agrícola de Rio Preto). Uma semana trazendo cigarro, sandubas e coca-cola”, registrou o próprio autor.

Silva pensava, matutava, sonhava coisas grandes. Grandes e ousadas como a Maria Fumaça que tanto queria ver circular ao redor das praças centrais de Rio Preto, e que só não conseguiu porque fora avisado pela prefeitura que “a cidade não precisava de ferro velhos”.
Grandes como os tipos gráficos que tanto foram úteis a Steve Jobs nos primórdios da criação de seu império tecnológico. Um visionário high-tech que deixou impressa uma outra história.
Um gênio tipógrafo

Num universo dominado por bits e bytes e pelos zeros e uns dos códigos binários, pode ser difícil imaginar, à primeira vista, como esse reino governado pela fluidez do digital possa ter relação tão íntima com os tipos móveis gráficos. Em que esquina da história Johannes Gutenberg (1400-1468) e sua revolucionária prensa - base fundamental da tipografia – , se encontra com Steve Jobs (1955-2011), o todo-poderoso criador da Apple?
Pois é o próprio Steve quem elucida como se deu esta jun ção. Era 1972 e sem estímulo para seguir um curso superior na Reed College, matriculou-se em… caligrafia! Foi a base para suas criações. Quando, já no princípio dos anos 1980, ele percebeu o potencial comercial da interface gráfica do usuário guiada pelo mouse, o que o levaria a criar o Macintosh, foram as aulas de caligrafia que o guiaram:
“Se nunca tivesse entrado naquele curso na faculdade, o Mac nunca teria tido aquelas fontes tipográficas ou as letras proporcionalmente espaçadas (…) e os computadores pessoais poderiam não ter a tipografia bela que têm”, resumiu Jobs. Hoje, esta visão está impressa na Apple e faz com que seja a letra i – de iMac, iPod, iPhone, iPad – o ícone de uma marca. E o ponto onde Gutenberg encontra Jobs, que encontra Silva.