Relojoeiro há sete décadas, Ozório permanece firme na profissão em Rio Preto
Era uma vez Ozório e Julieta, e os dois, juntos, escrevem uma história de amor unidos pelo tempo


O caminho por onde começa esta história tem um correr antigo. Um caminho por onde passava boi, passava boiada. Caminho de correr história, caminho em que o tempo foi moldando aos poucos - paisagem que era de terra, depois pedra, depois asfalto; paisagem que era ermo, depois casas, depois comércio, depois prédios, depois tudo. Gente foi passando, mudando. As horas correram, pegaram carona na tal modernidade. Hoje, a avenida Potirendaba é avenida grande, de carro grande que passa chispando, alheio ao que fica. E há mais de meio século, seu Ozório Indalesio de Araújo, 93 anos, a tudo testemunha num cantinho ali da Potirendaba. Senhor de um outro tempo, de ponteiros amigos, seu Ozório é um relojoeiro especialista, doutor em relógios antigos. Como antigo foi o correr do tempo, que ele viu, viveu e vive sempre ao lado de sua amada Julieta.
Seu Ozório é amigo do tempo. Dono de ofício raro, tem na sua oficina um forte, um canto mágico em que reinam horas suspensas, imersas em tons melódicos, atadas ao correr inescapável da história. Trabalha com todo tipo de relógio, de pulso, analógico ou até mesmo digital! Conserta, troca pilha, engrenagem, o que precisar. Faz o mesmo com os relógios de bolso, charmosos, estilosos, feito o clássico “Omega Ferradura” (nome que faz alusão à letra ômega do alfabeto grego, que em maiúsculo assemelha-se a uma ferradura). Mas sua paixão maior são os relógios de parede, de carrilhões, de mesa e os cucos.
“Aprendi sozinho, não tive professor. Fui olhando como fazia e depois comecei a mexer até pegar o jeito”, conta seu Ozório, que fala com sincera paixão sobre a profissão que iniciou bem jovem, ainda em Nova Granada. Na cidade próxima de Rio Preto, aliás, foi o começo de tudo. Do ofício e de conhecer o amor de sua vida, até hoje inseparável e apaixonada ao seu lado. “Prazer, eu me chamo Julieta, e ele é o meu Romeu”, diz dona Julieta Santana de Araújo, 86 anos, baiana de Caculé que migrou com a família para Nova Granada ainda menina.
Ali, naquele cantinho no começo da avenida Potirendaba, bairro São Joaquim, os dois sedimentaram suas vidas, viram os dois filhos crescerem, trilharem seus caminhos. Metade lar, metade a oficina onde reinam os relógios espalhados pelas paredes e pela mesa de trabalho de seu Ozório, tão amigo das horas que ignora aposentadoria e férias. “As únicas férias que ele tirou na vida foram de 15 dias, e ele não via a hora de voltar a trabalhar”, lembra dona Julieta.
Harmonia perfeita

Os dois trabalham em harmonia perfeita, como os ponteiros de um relógio. Ele ali, em sua mesinha junto ao balcão de atendimento, imerso no mundo de mecanismos, cordas, engrenagens, tudo que faz andar o tempo, marcá-lo e contá-lo. Quando coloca seu monóculo com lente de aumento e começa a investigar a “alma” destas máquinas, o tempo parece ficar em suspenso ao redor. Nada o abala, nada o desconcentra. Dona Julieta, enquanto isso, ajuda no atendimento, negocia, vende.
"Temos Junghans muito bonitos à venda, de mesa, de parede e até despertador. Os Ansonia também são excelentes, sem falar nos cucos”, detalha a mulher, sempre com um sorriso doce ao final de cada frase.
Os Junghans remontam a 1866, quando surge a marca alemã de relógios de parede. Em 1870, já produziam cem relógios por dia. Em 1870, Arthur Junghans, filho do fundador, assumiu e a empresa avançou rapidamente. Em 1903 chegou a ser a maior fabricante de relógios do mundo. Já os modelos Ansonia são da Ansonia Clock Company, uma das principais fabricantes de relógio no século 19, nos Estados Unidos. Produziu milhões de relógios no período entre 1850 e 1929, ano em que a empresa entrou em concordata e vendeu seus ativos para uma empresa da então União Soviética.
Mas os prediletos de dona Julieta são os cucos. São da Howard Miller, marca norte-americana conhecida pela sua qualidade insuperável e qualidade que beira a perfeição. O forte da fábrica eram reproduções dos séculos 18 e 19 em versões de madeira e metais finos.
"Todo relógio tem um som especial. Tem um jeito próprio, não marcam só o tempo”, afirma seu Ozório.
Não apenas marcam o tempo, como produzem a ilusão. A ilusão de um tempo que achamos que temos. E um tempo que é amigo de seu Ozório, o Romeu de Julieta. Nem montéquio e nem capuleto. Apenas um lindo casal de Rio Preto que o tempo uniu ali, num cantinho da Potirendaba.