Diário da Região
CRÔNICAS DO MARIVAL

Era uma vez em Hollywood

Jornalista Dulce Damasceno de Brito, que viveu por um período na região, foi a primeira brasileira correspondente em Hollywood

por Marival Correa
Publicado em 26/09/2020 às 18:52Atualizado em 06/06/2021 às 20:00
Cartaz do filme Janela Indiscreta, de 1954, de Alfred Hitchcock (Fotos: Museu de Hollywood e reprodução/Site https://dulcedamascenodebrito.wordpress.com/)
Galeria
Cartaz do filme Janela Indiscreta, de 1954, de Alfred Hitchcock (Fotos: Museu de Hollywood e reprodução/Site https://dulcedamascenodebrito.wordpress.com/)
Ouvir matéria

Hollywood é um lugar onde te pagam mil dólares por um beijo e cinquenta centavos por sua alma.

A frase mordaz de Marilyn Monroe ilumina uma face sombria de Hollywood, muito além do icônico letreiro que identifica o epicentro cinematográfico mundial. As luzes que hipnotizam, movimentam cifras bilionárias e transformam simples mortais em estrelas são as mesmas que revelam o alto preço da fama. O caminho da consagração, não raro, pode se tornar literalmente o caminho da perdição. Poucos conheceram tão intimamente esse universo estrelado quanto uma jornalista que, na adolescência, viveu por um período na região de Rio Preto. Dulce Damasceno de Brito foi correspondente em Hollywood nas décadas de 1950 e 1960.

Natural de Casa Branca (SP), Dulce concretizou um sonho distante para muitos numa época em que as barreiras para os interioranos eram imensas: viver na meca do cinema mundial. Em 1952 partiu para lá, contratada pelos Diários Associados e pela revista o Cruzeiro, pertencentes ao império de Assis Chateaubriand. Tornou-se a primeira mulher brasileira a ser correspondente em Hollywood, em um tempo em que Hollywood era fechada a correspondentes estrangeiros e a mulheres.

A sua estadia em solo americano prolongou-se por 16 anos. Nesse período, conheceu quase todas as celebridades. Ao contrário do que ocorre hoje, ela tinha trânsito livre nos estúdios e conquistou acesso e credibilidade afetiva de muitos artistas. Alguns tornaram-se amigos, de um ir à casa do outro. Como, principalmente, Carmen Miranda, amizade essa que durou até o fim da vida da 'Pequena Notável' e que Dulce eternizou na obra "O ABC de Carmem Miranda".

O mestre Ignácio de Loyola Brandão dedicou a ela emocionada crônica em novembro de 2008, por ocasião de sua morte, aos 92 anos.

"Dulce era - e sempre confessou sem escrúpulos - mais fã do que os fãs. Ela fazia o que gostaríamos de fazer. Entrevistar Kim Novak, Rita Hayworth, Greer Garson, Carmem Miranda (de quem foi amiga íntima, estava na casa dela na noite de sua morte), Gregory Peck, Marlene Dietrich, Audrey Hepburn, Sofia Loren, James Dean. Gente, Dulce conheceu James Dean, falou com ele. O ídolo de minha geração, jamais igualado. Por que Dulce nos conquistava? Porque manteve em Hollywood o jeitão caipira, com seus tailleurzinhos de coquetel em Casa Branca, penteados para ir à domingueira no clube de Mirassol. Ou chapeuzinhos bregas. Mas essa era a sua marca. Ela era de uma inocência que encantava. O seu sorriso ao lado dos astros, e eram todos superastros, seria o nosso sorriso, nosso embevecimento", escreveu o jornalista e escritor.

Loyola conta que ela adorava aquela Hollywood que, nas suas palavras, não existe mais. "Uma cidade fantasia, onde tudo era fake, até mesmo os romances, como o de Rock Hudson e sua mulher, num casamento arranjado pelo estúdio para mostrar que ele não era gay. Naqueles anos, Dulce jamais citou qualquer possibilidade de um ator ser gay, ter tendências", declara ele, lembrando que Dulce só "baixou a guarda" em 2006, quando publicou "Lembranças de Hollywood", em que reuniu 140 evocações em ordem alfabética (por sobrenome), ou seja, reproduz impressões pessoais sobre 140 celebridades hollywoodianas, com "suas manias e idiossincrasias, a sexualidade de uns e outros, a decadência de vários".

Discrição e intimidade

Dulce conquistou o universo estelar de Hollywood graças ao seu profissionalismo e discrição nos bastidores. Entre os entrevistados que a recebiam de maneira fraterna, gente como Marilyn Monroe, Clark Gable, Elizabeth Taylor, Rock Hudson, Doris Day, Cary Grant, Marlene Dietrich, James Stewart, Charlton Heston, Audrey Hepburn, John Wayne, Kathryn Grayson, Jane Wyman, Barbara Stanwyck, Gregory Peck (seu grande amor), Walt Disney, Grace Kelly e Marlon Brando, famoso por se recusar a receber jornalistas, mas deu entrevistas para Dulce em três ocasiões. E permitiu que ela frequentasse sua casa.

Isso sem falar de diretores consagrados como Robert Aldrich, Cecil B. de Mille, Michael Curtiz, Orson Welles e Billy Wilder.

Numa época na imprensa em que não havia o gravador e os jornalistas, para comprovarem que tinham entrevistado determinada personalidade, eram obrigados pelas chefias a tirar uma foto com a pessoa, Dulce colecionou um raríssimo catálogo estrelado. Estrelas que até hoje povoam o imaginário de quem ama essa terna janela indiscreta, cheia de luz e de som, a que chamamos de cinema.

A emoção com Judy e a ironia de Bogart

Nos últimos anos, Dulce atuou como colunista da revista SET, especializada em cinema. E ali deixou mais de suas impressões únicas sobre os bastidores de Hollywood. Como a vez em que foi ao estúdio onde Judy Garland gravava "Nasce Uma Estrela": "Entrei no set sem me identificar como jornalista. A cena do dia era um ponto culminante do filme, aquela em que a estrela se desculpa do seu sucesso perante o marido prestes a se suicidar. Sensibilidade à flor da pele, o rosto contorcido pela emoção, Judy inicia seu monólogo. As lágrimas escorrem pelo seu rosto. Para minha própria surpresa, acredito na cena e começo a chorar também. O publicista ao meu lado tira um lenço e enxuga as lágrimas. Quando Cukor ordena 'corte', o silêncio impera. Ainda com um nó na garganta, movidos por algo inexplicável, todos aplaudimos. Foi a primeira e única vez que chorei em um set".

Vale também o registro do embate entre dois astros de primeira grandeza - Humphrey Bogart x Marlon Brando: "Cheguei aqui com apenas um terno e disseram que eu era pobre e cafajeste. Vinte anos depois, Marlon Brando aparece com apenas uma camiseta e um surrado jeans, e a cidade inteira fica babando por ele e o transforma em ídolo. Isto demonstra quanto Hollywood progrediu…". A frase é tirada do livro "Hollywood Nua e Crua - Parte 2 - Os Bastidores da Fábrica de Sonhos", de Dulce Damasceno de Brito (Editora Best Seller; pg. 150). É Bogart dirigindo-se a Brando que, no início dos anos 1950, encontrava-se em fase de consolidação de sua carreira, o que ocorreria com "Sindicato de Ladrões", filme dirigido por Elia kazan lançado em 1954.