Cresce a procura por medicamentos à base de canabidiol em Rio Preto
Aumenta o número de ações na Vara da Infância e Juventude para ter acesso ao composto, que pode ser utilizado no tratamento de diversas doenças

Tem crescido em Rio Preto a busca na Justiça por autorizações para uso de medicamento à base de canabidiol, um dos compostos da Cannabis sativa, popularmente conhecida como maconha. Na Vara da Infância e Juventude, foram quatro ações julgadas procedentes em 2019, sete em 2019, oito em 2020 e dez apenas no primeiro semestre de 2021, em que o poder público foi condenado a fornecer o medicamento. De acordo com o juiz Evandro Pelarin, algumas delas já têm sentença e acórdãos no Tribunal de Justiça confirmando a tese. As indicações mais frequentes são para tratamento de convulsões e estados epiléticos.
Conforme a Secretaria de Saúde de Rio Preto, foram distribuídos 16 processos para que a Prefeitura forneça os fármacos, o que já está sendo feito em alguns casos. A reportagem questionou o Tribunal de Justiça sobre a quantidade de processos para obtenção de medicamentos à base de canabidiol que tramitaram nos últimos anos, não apenas para crianças, mas para pessoas de todas as faixas etárias, porém foi informada que não seria possível fazer este levantamento.
No Brasil, a lei nacional 11.343, de 2006, prevê que a União pode autorizar o plantio, a cultura e a colheita do canabidiol, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em locais e prazos determinados, mediante fiscalização. No País, no entanto, existe um único laboratório que produz e vende nas farmácias os medicamentos à base de canabidiol. De acordo com o professor doutor Valdecir Carlos Tadei, especialista em terapia por canabinoides e professor da Famerp, ele está situado no Paraná e importa a matéria-prima.
Como a matéria-prima é importada, o preço acaba ficando elevado. São raros os casos em que a família consegue autorização para plantar em casa - quando isso acontece, há associações que dão assistência jurídica e orientações sobre como cultivar a maconha e extrair dela o óleo de canabidiol.
Ou seja, autorizações para plantio e venda de produtos nacionais são exceção. Por isso, a maioria das famílias precisa recorrer aos importados. Para isso, não basta apenas ter a receita médica. É preciso autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), para só depois importar, cujo custo é alto. Essa é a razão pela qual, para muitas famílias, a única solução é recorrer à Justiça para que o poder público possa realizar a compra do medicamento, um processo que pode levar meses e até anos.
De acordo com Evandro Pelarin, são levados em conta vários fatores para a Justiça mandar o Estado ou a Prefeitura fornecerem um medicamento à base de canabidiol. "O apontamento médico, a receita e o relatório detalhado da doença e dos meios disponíveis para o tratamento, específicos ao caso, são os principais elementos considerados. O juiz vai estar sempre atento ao que o médico disse a respeito da doença e o tratamento disponível."
É ciência
Segundo o médico Valdecir Carlos Tadei, a Cannabis medicinal foi um dos primeiros remédios do mundo, cultivada há milênios na região do Himalaia. "Em 1500 antes de Cristo no Egito já era descrita para reduzir inflamação. Em 1843, um médico americano que foi à Índia descreveu as propriedades da planta para tratar epilepsia. O que ele relatou há quase 180 anos hoje é provado pelos trabalhos científicos", diz o especialista. "Só na década de 2000 foram registrados cerca de 3 mil estudos sobre os tratamentos da Cannabis medicinal."
Tadei explica que os canabinoides extraídos da Cannabis medicinal, quando administrados ao paciente, agem em receptores no sistema nervoso central e periférico. "E também em células associadas ao sistema imunológico, o efeito é a ação de controle dos neurotransmissores, facilitando o restabelecimento da neuromodulação e consequentemente o tratamento."
O especialista afirma que o canabidiol pode ajudar no tratamento de autismo, epilepsia, Doença de Alzheimer, Doença de Parkinson, dor em geral (inclusive a do câncer), fibromialgia, depressão, insônia, transtorno do pânico, transtorno de ansiedade generalizada, psoríase, esclerose múltipla, Doença de Chron, transtorno de atenção e hiperatividade, transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), paralisia cerebral, inflamação crônica e artrite.
Plantio para fins medicinais está em pauta
Tramita desde 2015 o projeto de lei 399, que regulamenta o plantio de maconha para fins medicinais. Ele pouco andou até 2019, quando foi instituída uma comissão especial que deu parecer favorável ao texto. De autoria do deputado Fábio Mitideiri (PSD), o projeto altera a Lei 11.343/2006, que autoriza o plantio para fins medicinais desde que autorizado pela União. Ele regulamenta como deve ser feito esse plantio e determina que somente pessoas jurídicas poderão cultivar a Cannabis sativa.
Uma das justificativas do projeto é que importar remédios à base de canabidiol ou mesmo comprar o pouco existente no Brasil é caro - três ampolas de 10 ml de um deles tem um preço que chega perto de R$ 3 mil. O texto teve parecer favorável, porém ainda não passou pelo plenário. Algumas associações, como a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), se posicionam de forma contrária à mudança na lei, alegando que ela poderia facilitar o acesso das pessoas à maconha.
Atualmente, o plantio no Brasil é permitido somente com autorização judicial. "Para que uma pessoa consiga o acesso, a peça jurídica utilizada é um habeas corpus com pedido de liminar", explica a advogada Tatiany Gailhardo. "É preciso ter um laudo médico, se a pessoa tiver anexado na Anvisa uma autorização de importação é importante essa documentação. É preciso que o paciente prove que sabe cultivar. Para provação desse cultivo basta uma declaração de experiência adquirida, e é importante um orçamento mostrando que é mais barato cultivar do que importar."
De acordo com a Agência Brasil, o projeto prevê que somente pessoas jurídicas (como associações e laboratórios) poderão fazer o cultivo das plantas de Cannabis para fins medicinais. Para isso, será necessária autorização do poder público e as sementes ou mudas utilizadas deverão ter certificação, somente podendo ser feito o cultivo em local fechado (como uma estufa, por exemplo), impedindo o acesso de pessoas não autorizadas e a disseminação das plantas no meio ambiente. O local deverá ter câmeras e sistema de alarme e segurança.
"O texto também diz que os cultivos terão uma cota pré-definida que deverá constar do requerimento de autorização. Além disso, as plantas de Cannabis destinadas ao uso medicinal serão classificadas como psicoativas (aquelas com teor de THC superior a 1%), e como não-psicoativas (aquelas com teor de THC igual ou inferior a 1%). Os cultivos terão ainda que obedecer a requisitos de controle, tais como: rastreabilidade da produção, desde a aquisição da semente até o processamento final e o seu descarte; plano de segurança para a prevenção de desvios; presença de um responsável técnico, que se responsabilizará pelo controle dos teores de THC, constantes das plantas", detalha a Agência Brasil, portal de notícias ligado ao governo federal.
Para a advogada Tatiany, qualquer pessoa poderia cultivar a Canabis em casa. "Restringir a produção apenas para pessoas jurídicas é uma tentativa do Estado de enriquecer cada vez mais as grandes indústrias farmacêuticas e violar a liberdade humana, o acesso à saúde e aos tratamentos naturais, que já são cientificamente comprovados", considera.
Segundo o anestesista Valdecir Carlos Tadei, especialista em terapia por canabinoides e professor da Famerp, o cultivo familiar e a produção artesanal da flor da Cannabis medicinal resulta em menor custo, porém a qualidade do óleo pode ser questionável. "Uma vez que os controles de acurácia, concentração de THC e canabinoides não serão equilibrados como é o produto produzido em um laboratório, mas enquanto for proibida a plantação para fins medicinais, os preços serão elevados, infelizmente."
Ele pontua que existem cerca de 30 instituições no Brasil que oferecem aos associados a assistência jurídica para conseguir autorização de plantio e, caso a decisão seja favorável, todas as orientações de como cultivar e extrair o óleo da Cannabis da forma correta. Uma delas é a Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi), que conta com parcerias inclusive de órgãos ligados ao governo. O site é o https://www.apepi.org/.
O plantio seria fiscalizado, mesmo que regulamentado. Segundo Tadei, essa fiscalização será prevista na regulamentação da lei oriunda do projeto 399, se ele for aprovado. "Mas as organizações com poder de polícia poderão fazer essas fiscalizações e controle das plantações, a Polícia Federal, a Policia Militar, por exemplo, ou outras sugestões que surgirão na discussão da regulamentação da lei. Mas esses controles serão muito bem-vindos, o mais importante é garantir o acesso aos medicamentos para todos com a redução nos custos de produção", acredita.
Entenda melhor
Utilizar remédios à base de canabidiol é a mesma coisa que utilizar maconha?
Não. Ele é uma das substâncias da Cannabis sativa, não tendo os mesmos efeitos psicóticos encontrados quando a planta é utilizada como entorpecente.Para quais doenças o canabidiol pode ser eficiente?
O canabidiol pode ajudar no tratamento de autismo, epilepsia, Doença de Alzheimer, Doença de Parkinson, dor em geral (inclusive a do câncer), fibromialgia, depressão, insônia, transtorno do pânico, transtorno de ansiedade generalizada, psoríase, esclerose múltipla, Doença de Chron, transtorno de atenção e hiperatividade, transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), paralisia cerebral, inflamação crônica e artrite.Como comprar canabidiol?
É impossível conseguir o óleo à base de canabidiol, substância extraída da Cannabis sativa, sem uma receita médica. Depois disso, é preciso fazer um pedido à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para importar o fármaco. O cadastro pode ser feito por vias eletrônicas, no site https://www.gov.br/pt-br/servicos/solicitar-autorizacao-para-importacao-excepcional-de-produtos-a-base-de-canabidiol. Somente com autorização da Anvisa é possível importar o remédio.É muito caro. Qual é o procedimento?
Os preços do produto são elevados porque, via de regra, ele não é produzido no Brasil nem conta com matéria-prima local. Quem não tem condições de pagar pode entrar com uma ação judicial para que o poder público faça a compra e o fornecimento.Posso plantar Cannabis sativa para produzir o medicamento?
Somente com autorização judicial. E é necessário saber extrair o óleo da planta - algumas associações podem ajudar com isso e ainda fornecer assistência jurídica para conseguir o aval para plantio. Está em tramitação um projeto de lei para regulamentar o plantio e como ele deve acontecer, mas também será necessária autorização para o cultivo.Fontes: Cannabis&Saúde; Tatiany Gailhardo, advogada e Valdecir Carlos Tadei, especialista em terapia com canabinoides e professor da Famerp
Família defende o uso do composto
A consultora Micheli Thais Pereira Lima, de 40 anos, é mãe de Carlos Eduardo Fazani Bezerra, o Kadu, de 16 anos. Ele foi diagnosticado com Síndrome de Dravet aos 12 anos, uma condição genética e rara que provoca convulsões de difícil controle. Mesmo com anticonvulsivos, Kadu teve crises diárias por muitos anos. Depois dos 3 anos, parou de falar. Desde o início, a médica que o acompanha indicava o canabidiol. Quando a família decidiu que gostaria de tentar, o medicamento foi importado - há alguns meses, conseguiu-se a determinação para que o poder público forneça o óleo.
A família é a prova da demora judicial para fornecimento do remédio, que foi adquirido com recursos próprios nos primeiros três anos. A liminar para que o Estado entregasse o composto a Kadu veio em dezembro de 2019, mas a primeira entrega ocorreu nove meses depois, em setembro de 2020. Micheli garante que o canabidiol, utilizado pelo filho desde 2017, foi um divisor de águas em sua família. A "curva" da frequência das crises epiléticas de Kadu é decrescente, e de convulsões diárias ele passou a ter no máximo duas por mês.
"O canabidiol modificou o Carlos Eduardo numa condição geral, melhorou o equilíbrio dele para andar, aumentou muito mais a atenção, a concentração, a percepção do mundo dele, ele se reconhecendo como indivíduo, porque antes era dopado de remédio", conta Micheli. "Uma criança apática, que não brincava, não interagia, não sorria, não dava uma risada. Hoje ele dá gargalhadas, brinca com a cachorra. A gente tem tido maior tranquilidade porque eu sei que ele não vai ter crise mais. (MG)