Quando a dança é um legado de amor
Cleyde Lerro Filiage formou talentos que brilharam no mundo e continua deixando marcas profundas no cenário cultural rio-pretense

“A dança é a expressão da alma. Ensinar é a forma que encontrei de deixar um pedaço de mim em cada aluno”, afirma Cleyde Lerro Filiage.
Aos 89 anos, a bailarina é mais do que uma professora de dança. É inspiração em movimento, e parte essencial da história cultural de Rio Preto. Fundadora da escola de ballet que leva seu nome, ela ainda caminha com graça pelos corredores onde formou gerações de bailarinas e bailarinos, muitos dos quais hoje brilham no Brasil e no exterior.
Viúva de Iguiberto Filiage e mãe de Luciana, Simone e Iguiberto Jr., ela construiu sua vida entre partituras de piano, sapatilhas e aplausos. Começou pela música clássica, ainda menina, incentivada pelos pais, e encontrou no ballet sua grande missão. Foi uma das primeiras a trazer para a cidade mestres renomados e, com coragem e afeto, criou um espaço onde a arte sempre teve voz, corpo e coração.
“Desde que eu era criança, meus pais me incentivaram na arte da música com estudos no piano clássico. Junto com a minha formação como professora no Colégio Santo André, formei minha carreira pianística dando aulas nos conservatórios de Rio Preto, Etelvina Ramos e Maestro Ranzini”, conta.
Mesmo depois de tantas décadas, Cleyde não parou. Acompanha programas de dança – “Arte 1” e “Curta” –, reza o terço diariamente, lê livros, curte momentos com a família e gosta de tomar café no shopping, sempre que pode, está ali, sentada em sua cadeira cativa, assistindo às aulas das filhas que hoje comandam a escola com o mesmo cuidado e paixão que ela plantou. “Formei muitas alunas que montaram suas escolas em outras cidades e algumas se tornaram famosas no exterior, como Cássia Lopes, que hoje está na Alemanha. Atualmente, supervisiono minha escola, graças as minhas filhas que são as mestras da dança clássica”.
Na entrevista a seguir, Cleyde abre o coração e compartilha lembranças, desafios e aprendizados de uma vida inteira dedicada a ensinar ballet.
BE – A senhora foi pioneira ao fundar a primeira escola de ballet de Rio Preto. O que a motivou a dar esse passo tão significativo em 1980?
Cleyde Lerro Filiage – Nos finais de semana, quando algum professor renomado não podia vir, ele me confiava suas aulas. Isso acontecia porque acreditavam na minha capacidade. Isso me deram confiança e motivação para fundar minha própria escola, ainda nos anos 70.
BE – Aos 89 anos recém-completados e ainda ativa no ensino do ballet, de onde vem tanta energia e essa paixão contínua por ensinar?
Cleyde Lerro Filiage – Vem de uma palavra: talento que vem de Deus.
BE – Quais foram os maiores desafios no início da escola e como a dança era vista na cidade naquela época?
Cleyde Lerro Filiage – Os desafios foram muitos. Um dos principais era encontrar espaços e palcos adequados para apresentar nossas alunas. Por isso, viajávamos com frequência para cidades da região e participávamos de mostras e competições onde fosse possível mostrar nosso trabalho.
BE – A senhora estudou com grandes nomes da dança brasileira. Como foi essa experiência e de que forma isso influenciou seu estilo de ensino?
Cleyde Lerro Filiage – Além de aprender com professores consagrados e repassar esses conhecimentos às minhas alunas, também fiz vários cursos no Ballet Stagium. Lá, tive contato com diferentes estilos, como moderno, jazz, alongamento e o próprio ballet clássico, que pude aprimorar ainda mais. Essa diversidade certamente enriqueceu meu modo de ensinar.
BE – Ao longo desses anos, como a senhora vê a evolução da dança clássica na cidade e na região?
Cleyde Lerro Filiage – Infelizmente, percebo uma certa estagnação, muito por conta da falta de incentivo público e da escassez de formação profissional especializada.
BE – A senhora também tem formação sólida em piano erudito. Como a música influenciou sua prática e seu ensino da dança?
Cleyde Lerro Filiage – O piano foi minha porta de entrada para o universo da arte e, mais tarde, da dança. A sensibilidade musical que desenvolvi desde cedo sempre guiou meu trabalho com o ballet.
BE – Durante muito tempo, a senhora deu aulas de piano e de dança paralelamente. Como era equilibrar essas duas paixões?
Cleyde Lerro Filiage – Era um desafio enorme. Chegou um momento em que, em razão do volume de alunas, precisei escolher. Foi aí que optei por me dedicar exclusivamente ao ballet clássico.
BE – A senhora já formou inúmeros bailarinos que hoje brilham em grandes companhias no Brasil e no exterior. O que sente ao ver seus alunos alcançando voos tão altos?
Cleyde Lerro Filiage – É uma emoção muito grande. Sinto-me orgulhosa, pois cada conquista deles é também minha. Frutos de anos de dedicação, disciplina e amor pela arte.
BE – Qual a maior lição que procura transmitir a seus alunos, além da técnica e disciplina da dança?
Cleyde Lerro Filiage – Além da técnica e disciplina, procuro ensinar que a dança é expressão da alma. Quero que meus alunos levem para a vida sensibilidade, ética, paixão e respeito — por si mesmos, pelo palco e pela arte.
BE – Existe algum momento ou aluno que tenha sido particularmente marcante para a senhora ao longo desses anos?
Cleyde Lerro Filiage – Sim, ao longo desses anos, vivi muitos momentos marcantes, mas um em especial ficou gravado na memória e no coração: quando, em 1988, a renomada Cia. CINE NEGRO de São Paulo nos escolheu para participar com eles do balé Quebra-Nozes. Foi um reconhecimento grandioso, que trouxe visibilidade ao nosso trabalho e abriu portas para nossos alunos.
Além disso, tive o privilégio de formar talentos que deixaram marcas profundas, como Cássia Lopes e Uatila Coitinho e Kioe Ogura, entre tantos outros que levaram o nome da nossa escola para palcos importantes. Cada história como a deles é um lembrete do quanto vale a pena acreditar, ensinar e seguir com amor à arte da dança.
BE – Hoje a senhora administra a escola com a família. Como é essa experiência e qual a importância disso para a continuidade do seu trabalho?
Cleyde Lerro Filiage – Dividir a administração da escola com minha família é uma bênção e uma grande força. Trabalhar ao lado de quem compartilha dos mesmos valores e amor pela dança garante não só a continuidade do nosso legado, mas também renova diariamente nossa paixão pelo que fazemos.
BE – A senhora imaginava que sua escola de ballet teria um impacto tão duradouro na cultura da cidade?
Cleyde Lerro Filiage – Quando comecei, meu desejo era apenas ensinar com amor e oferecer à cidade uma formação séria em dança. Nunca imaginei que a escola se tornaria um pilar cultural de São José do Rio Preto. Ver esse impacto duradouro me emociona profundamente. É a prova de que quando se trabalha com paixão e propósito, os frutos ultrapassam o tempo e tocam gerações.
BE – Como professora do ensino fundamental, a senhora acredita que a arte deveria estar mais presente no currículo escolar?
Cleyde Lerro Filiage – Sem dúvida. A arte, em todas as suas formas, é essencial na formação das crianças. Ela desenvolve sensibilidade, criatividade, empatia e pensamento crítico, valores que a educação tradicional nem sempre consegue alcançar sozinha. Acredito que uma escola que valoriza a arte forma não apenas alunos mais completos, mas também seres humanos mais conscientes e preparados para o mundo.
BE – Que conselho a senhora daria para jovens que sonham com uma carreira na dança hoje?
Cleyde Lerro Filiage – Meu conselho é que sonhem grande, mas estejam dispostos a trabalhar duro todos os dias. A carreira na dança exige dedicação, persistência, humildade e, acima de tudo, paixão verdadeira pela arte. Nem sempre o caminho será fácil, mas cada desafio enfrentado com amor transforma o bailarino e o ser humano. Acreditem no próprio talento, respeitem o processo e nunca percam a alegria de dançar — é ela que sustenta a jornada.