‘Sede’, Amélie Nothomb

Amélie Nothomb (1966-) tem muito a dizer. Desde 1992, quando estreou na literatura, a escritora belga publicou mais de 30 romances. Filha de um diplomata, ela tem biografia curiosa. Viveu parte expressiva da infância e adolescência no Japão e na China. Trabalhou como tradutora em Tóquio e se diz identificada com a cultura japonesa.
“Sede” (2021) é um de seus romances mais recentes. Tem tema ousado. Isso porque o romance traz, como protagonista, Jesus, que narra seus últimos dias na Terra. Enquanto “espírito que se fez carne”, o personagem de Nothomb, muito embora seja parte do supranatural, compartilha das sensações e dos sentimentos humanos.
Em sua peregrinação linguística, o personagem-narrador reflete sobre o amar, o morrer e o ter sede. Ter acesso à água é um acalento para a alma e para o corpo, o que dá a este, posição de centralidade, na narrativa. E, com ele, vem a dor, a tristeza, o desamparo, a cólera, a solidão, o prazer, o amor e a alegria.
Ao narrar seus últimos dias na Terra, Jesus aborda sua crucificação e ressuscitação: “Sempre soube que me condenariam à morte. A vantagem dessa certeza é que posso voltar minha atenção àquilo que merece: os detalhes”.
Nothomb cria um narrador que, contrariando a parcialidade do olhar da primeira pessoa, paira onisciente sobre o texto. Afinal, Deus, em sua onipresença, é capaz de narrar a sua vida e a sua morte, as dores da crucificação e a ascensão aos céus, o que o faz pairar sobre a narrativa, reafirmando seu caráter suprassensível.
“Sede” faz confluir o literário, o religioso e o filosófico. O Jesus de Nothomb cita o poeta Paul Valery: “Não conheço o nome de um escritor por vir que dirá: ‘A pele é o que há de mais profundo no homem’”. No âmbito da filosofia, ele cita a “Aposta de Pascal” ao pontuar que, para ele, a fé não é negociável: “A fé é uma atitude e não um contrato”.
Jesus cita Santa Teresa D'Ávila: “Uma mulher genial dirá um dia ‘Temo menos o demônio do que aqueles que temem o demônio’. Tudo está dito aí”. O personagem pontua que o mal maior é o que mora nos homens, uma ironia, visto que são eles que ameaçam sua vida e o eliminarão da Terra.
Uma pergunta constante do personagem, ao longo do romance, será: por que aceitou a crucificação? Trata-se, aliás, de uma questão que atravessa a história de vida da autora. Em entrevista, ela conta que escreveu a narrativa como exercício reflexivo, tentativa de responder a si mesma a pergunta que a angustiava desde criança.
É bem possível que, imersa na cultura oriental, a questão se tornasse ainda mais intensa. É claro que, como boa literatura, o texto de Nothomb não traz respostas óbvias ou simplistas, mas deixa a reflexão: “Não conheço o meu olhar e, no entanto, sei o que há em mim: aceitei o meu destino, não preciso de outro sinal”.
Leitura curiosa e provocativa!