Na obra "Cidadania e Classe Social", o sociólogo britânico Thomas Marshall defende: a cidadania plena só existe dentro de direitos civis, políticos e sociais. No contexto brasileiro historicamente marcado pela desigualdade entre as classes, percebemos a existência de indivíduos marginalizados e segregados em razão da renda, da ausência de moradia, do desemprego e do desalento. Como se não bastassem as condições insalubres de sua existência limitada pela negligência do Estado, essas pessoas ainda enfrentam o drama da aporofobia, termo dicionarizado para significar "desprezo, repulsa, aversão aos pobres". Na telinha, Chico Anysio já nos mostra tal comportamento desumano no personagem Justo Veríssimo, cujo bordão "eu quero que pobre se exploda" encontra terreno fértil no personagem Caco Antibes, de Miguel Falabella, no humorístico Sai de Baixo. Na realidade, há milhares de Justos, de Cacos e de aporofóbicos por aí, e sua cruzada contra os desfavorecidos está longe do fim.
Indubitavelmente, não há defesa para tal comportamento criminoso e revelador de falta de empatia, de altruísmo, de humanidade. Para início de conversa, há quem insista em culpar o pobre por suas próprias mazelas, atribuindo a pobreza a fatores como preguiça, indolência, dependência de políticas assistenciais públicas e privadas. Ademais, há certos aporofóbicos que insistem nos ideais malthusianos e na defesa da suspensão imediata de qualquer auxílio aos desfavorecidos, alegando que "alimentar os pobres é ruim porque eles procriam e aumentam a pobreza". Dá um sentimento de asco e de torpor ter de lidar com tamanhas afrontas à civilidade advindas, não raro, de quem diz professar cristianismo e ética. Falsos.
Para ilustrar essa situação já tão arraigada na pátria separada entre casas grandes e senzalas, com pequenos espaços de mediano conforto entre um e outro mundo antagônicos, temos a instalação de pedras em espaços urbanos para afastar "gente diferenciada, pobre e mendiga" que só faz prejudicar "a segurança, o comércio, a tranquilidade". E os direitos sociais de quem só está em situação de rua em virtude da crise, da perda de emprego, da corrupção que dilapida os recursos públicos? E o direito de ir e vir pelas ruas? Os novos designers de arquitetura hostil projetam luzes, sistemas de irrigação, plantio de cactos e uso de arame farpado para impedir o sono dos miseráveis abandonados pelo Estado, pelo estado, pela prefeitura e pelo povo. Em casos mais extremos, seus corpos famélicos e doentes são queimados, chacinados, exterminados por quem deseja recriar guetos e exclusão social.
Enfim, dizem por aí que o Estado é democrático e de direito. Para quem? Para nós, que temos aceso a emprego, a renda, a moradia, a educação e a lazer? Incluir desvalidos não é mera questão de cidadania. Pessoas participativas, com moradia e emprego, geram renda, reduzem gastos com segurança e na área da saúde. Cidades menos hostis são mais aptas para o turismo, para o trânsito de pedestres em segurança, para o comércio de rua. Incumbe aos poderes públicos efetivar medidas de acolhimento para os vulneráveis, a começar por documentação, albergue, serviços médicos. Aos empresários e povo em geral, cabe ver o próximo com um olhar mais humano e empático, não importa se pela fé na irmandade proposta pelo Cristo ou pela ética defendida por Marshall. O país não merece conviver com Justos Veríssimos e Cacos Antibes. Em tempo: não podemos aceitar que falem em "morador de rua". Rua não é casa, não é moradia. O correto é: "pessoa em situação de rua e desassistida pelo Estado, discriminada por uma parcela da sociedade que tem aporofobia e que, se considerada a lista da Revista Forbes, nem é rica". Pelo contrário, é triplamente pobre: de bolso, de espírito e de consciência social.
WASHINGTON PARACATU, Professor de Língua Portuguesa e Redação em Rio Preto. Escreve quinzenalmente neste espaço às terças-feiras