Éramos uma família trivial, eu-criança, espada de São Jorge e o gato a dormir no sofá. Tinha certeza de que a Terra era um enorme tablado e se alguém andasse, andasse e andasse em linha reta chegaria no abismo, o fim do mundo. Mais assustador seria de noite. Se não houvesse um muro na divisa, uma cerca que fosse, cairíamos no espaço sem fim. Perdia o sono só de imaginar meninos incautos sentados na borda do mundo com as pernas no precipício.
Certifiquei-me de que nosso chão é bem maior do que pensava quando fui à praia. Do lado de lá do oceano teria outras montanhas para estancar as ondas. Se não, elas se derramariam da Terra e não haveria os peixes. Tudo com olhos empíricos e meditações. Foi assim que, aos cinco anos de idade, eu possuía uma base de dados, painel de ideias, uma tese de geociências. Por deduções e conclusões particulares, sentia-me um rapazito importante, o terraplanista da Vila Imperial. Óbvio, desdenhei quando me contaram que o mundo é uma bola. Existiria céus de ponta-cabeça e ímã nos pés a nos segurar?
Lembrei-me dessa história pessoal ao rever o filme 'Pixote - A Lei do Mais Fraco', de Héctor Babenco. Numa cena, a professora ensina aos garotos da Febem: "A Terra é redonda como uma laranja". Nem deram confiança, pois aquele papo era invenção de burguês. Então a mestra se acerca de Pixote e ele soletra escrevendo no caderno: "A Terra é redond...". O que estaria a pensar o menino inocente? Seria ele eu-mesmo, aturdido, ao ver sobre a mesa um globo terrestre?
Muitos adultos garantem que a Terra é plana. Distraem-se em devaneios pueris. Publicam revistas afrontando Pitágoras, Aristóteles, Galileu e Fernão de Magalhães que viajou, viajou e viajou em linha reta para chegar ao mesmo porto de onde saiu. Além de provas milenares da forma esférica do mundo, um notável pensador do Século XX continua injustiçado pois o tiveram como lunático. Trata-se de José Arcadio Buendía, patriarca e fundador da pequena Macondo, na Colômbia.
Todo ano um cigano de nome Melquíades visitava o lugarejo. Fazia demonstrações das novas descobertas dos sábios e alquimistas do Oriente. Com nata vocação intelectual, José Arcádio encantou-se pelo telescópio. A ciência eliminou as distâncias! - murmurou. Virado ao contrário, a concentração de raios solares incendiou o capim. É um poderoso engenho de guerra! Mas o que escolheu para si foram o astrolábio e a bússola.
Trancou-se num quartinho do quintal, varou noites vigiando estrelas e falando consigo um monte de conjecturas. Meses depois (que lhe pareceram Cem Anos de Solidão), saiu à porta cabeludo, magro, olhos parados: "A Terra é redonda como uma laranja". A esposa o proibiu de dizer aos filhos tamanha tolice. Todos se convenceram de que José Arcadio perdera o juízo. Planeta é plano, tá na palavra! Em Macondo, até crianças sabem disso!
ROMILDO SANT'ANNA, Crítico de arte e jornalista. Livre-docente pela Unesp, é membro da Academia Rio-pretense de Letras e Cultura (Arlec). Escreve quinzenalmente neste espaço aos domingos