Cera, papel machê, papelão, gesso, metal, madeira, plástico, tecido… a criatividade humana chega a perder de vista as inúmeras possibilidades de materiais com os quais pode-se produzir uma máscara. E sua origem também se perde na sua ancestralidade: sua evidência mais antiga, segundo Anthony Shelton - diretor do Museu de Arte e Antropologia da Colúmbia Britânica -, remonta a um fóssil encontrado no México com idade estimada de cerca de 10 a 12 mil anos a.C. O uso desse artefato tanto misterioso quanto curioso, entretanto, passa a ser identificado na cultura europeia em meados de 9 mil anos a.C.
A essas alturas, imagino que você deva estar buscando na memória as simbologias da máscara inspirada(o) pelas suas experiências com ela.
Quem nunca vestiu uma máscara?
Seja para festejar a tradição carnavalesca provinciana, seja sua presença ainda marcante nos mais recentes blocos de rua (que, a propósito, são clandestinos em meio a uma pandemia, tá?), e até fora da esfera comemorativa: as máscaras também são utilizadas em protestos, encenações teatrais, proteção no exercício do trabalho e, talvez um uso que tenha vindo para ficar, freio contra a disseminação de doenças que se propagam pelo ar.
Desde ritos religiosos, passando pelas mortificadoras egípcias e se tornando muito populares - como sempre - pelas mãos dos italianos (através da Commedia Dell'Arte veneziana e da sua posterior adoção como peça decorativa), a máscara é um artefato simbólico, representativo, comunicador, teatral.
Sua etimologia se divide entre latim ('mascus', 'masca': fantasma), árabe ('maskharah': palhaço) e até hebreu ('masecha': zombaria) e marca uma característica singular da essência humana: nossa habilidade de transitar entre personagens os quais vestimos, construímos, reforçamos e abandonamos no decorrer do enredo de nossa vida. Como personas que precisam e escolhem desempenhar determinados papéis sociais, interpretamos o teatro da vida vestindo máscaras correspondentes.
Tais máscaras, inclusive, são capazes de enfatizar as características predominantes da personagem que atua sobre nós nas cenas cotidianas. A máscara da mãe, por exemplo, pode até deixar vestígios em toda ação de uma mulher, mas ela precisa vestir a máscara de amiga, professora, artesã, amante, engenheira, irmã, executiva de contas, administradora, prefeita para que fique claro para si mesma os atos de cada cena, cada peça, cada espetáculo.
Ainda que não nos percebamos mascarados, endossamos as nossas - isso mesmo, no plural - todos os dias. E embora nossa essência seja única e inominável, reconhecer o potencial que essas personagens exercem sobre nossa vida - o que determina, inclusive, nossa qualidade (ou não) de viver - nos oferece mais discernimento e clareza para fazer nossas escolhas cotidianas.
Hoje, o simples fato de usar ou não a máscara cirúrgica ou de tecido a fim de controlar minimamente a disseminação do coronavírus diz muita coisa sobre as outras máscaras que a gente veste, sobre os papéis que escolhemos desempenhar na sociedade; usá-la demonstra o mínimo de respeito ao próximo, à vida humana, ao direito do outro de ir e vir (seja a trabalho ou a passeio) sem que seja massivamente exposto à doença que segue fazendo vítimas e dividindo egos.
Recusar-se a vesti-la, por sua vez, representa egoísmo e ignorância em sua forma mais elementar - de modo que fazer caridade no final do ano e postar foto da capa do livro que pretende ler nos stories não transforma magicamente a criatura desmascarada em boa samaritana.
Algum negacionista ainda pode contestar: 'mas as máscaras, Letícia, mais cedo ou mais tarde, caem'. Sim. E é na esperança de que esse dito se torne veredito que aguardo tranquilamente, imbuída de todas as minhas máscaras - simbólicas ou protetivas -, o momento em que circular sem máscaras pelas ruas represente a vitória da ciência sobre a ignorância, e não apenas o fato de ser uma egoísta sem noção.
Letícia Flores, É professora de Língua Portuguesa, revisora e escritora em Rio Preto. Escreve quinzenalmente neste espaço às terças-feiras