A propósito do tema, em julgamento no Supremo Tribunal Federal, e diante de sua admissão no país vizinho, recentemente, segue um resumo do debate, travado por correspondências, entre Umberto Eco e o Cardeal Carlo Maria Martini, publicado no livro "Em Que Creem os Que Não Creem?", de 1995.
Para o autor de "O Nome da Rosa", não há conceito mais esquivo, esfumado, difuso, do que o de vida, que não se restringe à alma intelectiva, a existir também nas manifestações sensitivas e vegetativas, a exemplificar: hoje há quem se define como ecologistas radicais, para os quais há uma vida da Mãe terra mesma, até tal ponto que se perguntam se não seria melhor que a espécie humana desaparecesse para que o planeta (ameaçado por ela) sobrevivesse. Ainda, há os ascetas orientais que cobrem a boca para não ingerir e destruir microorganismos invisíveis. Ou, a maior parte de nós se horrorizaria se tivesse que degolar um porco, nele reconhecendo a vida, mas o presunto é consumido tranquilamente. Embora consideremos humano quem ama, matamos os animais até sabendo que a mãe 'ama' suas próprias crias.
Prossegue o filósofo italiano, a indagar: o recém-nascido é ser humano ainda que unido ao cordão umbilical, o que todos concordam, mas até quando podemos retroagir? Quando começa a vida humana? As incertezas, diz ele, exigem que negociemos sempre, e mais frequentemente emotiva que intelectualmente, o nosso conceito de vida, sem que se possa impor a outro, portanto, a sua posição ética, pois existem situações terríveis nas quais a mulher tem direito a tomar uma decisão autônoma, que afeta seu corpo, seus sentimentos e seu futuro.
O Cardeal Martini responde que o ponto ardente da controvérsia ética não está no conceito extenso de vida, frio e impessoal, e sim no de 'vida humana', cujo valor supremo, para os cristãos, transcende ao físico e ao psíquico, pois é a vida que Deus nos comunica, que todos são chamados a fazer parte. Desde a sua primeira individuação, a concepção, há um novo ser, real, distinto dos que lhe formaram, e, junto a ele, surge a responsabilidade de respeito à sua dignidade, que não está ao arbítrio, unicamente, de uma valoração benévola minha, ou de um impulso humanitário.
A vida humana, diz o religioso, abre um destino tão grande, primeiro, o de ser chamado por seu nome e, depois, todas as maravilhas possíveis, que é digna, desde o começo, de um amplo respeito para quem é o referente de um enorme e pessoal amor. Em sua condição de chamado e amado, este alguém tem já um rosto, é objeto de afeto e de atenção. Qualquer violação desta exigência de afeto e de atenção só pode ser vivida como conflito, como profundo sofrimento. Necessário fazer todo o possível para que tal conflito não aconteça. Quem leva as cicatrizes é, sobretudo, a mulher, a quem em primeiro lugar e de maneira fiduciária lhe confia o ser humano mais fraco e mais nobre do mundo.
Para Martini, caso não se reconheça a vida humana comungada, 'divina', que é, assim, um valor soberaníssimo, existe uma esplêndida metáfora que expressa de maneira laica o que une, no mais profundo, a católicos e a laicos: a metáfora do 'rosto', de Ítalo Mancini, em "O Regresso dos Rostos": "Nosso mundo, para vivê-lo, amar, nos santificar, não nos vem dado por uma neutra teoria do ser, não nos vem dado pelos eventos da história, ou pelos fenômenos da Natureza; vem-nos dado pela existência desses inauditos centros de alteridade que são os rostos, rostos para olhar, para respeitar, para amar, para acariciar".
EVANDRO PELARIN, Juiz da Vara da Infância e Juventude de Rio Preto. Escreve quinzenalmente neste espaço às sextas-feiras