"Próprio, característico, específico, típico, inerente, privativo, especial, ímpar, único, singular". Estes e muitos outros sinônimos que podem ser dispensados ao termo "peculiar" nos permitem compreender seu uso moderno, mas, como você já sabe, não costumo me contentar com as definições contemporâneas de uma palavra sem imaginar os caminhos - atravessados pelo tempo e espaço - que a tenham trazido até o nosso vocabulário atual.
E o que essa palavra peculiar tem de tão peculiar?
No último texto escrito naquele longínquo 2020 - o qual muitos de nós desejaríamos trancafiar numa caixa de Pandora para nunca mais precisar encará-lo -, atribuí esta definição ao ano que se encerrava: um ano peculiar.
"Ímpar, único, singular": um ano em que planos foram cancelados, tradições adiadas, vidas interrompidas. E nada disso é novo. O que faz das perdas, frustrações e mortes ferida aberta em nosso peito é a abundância com a qual a enxurrada de socos na boca do estômago rasgaram o leito da esperança, esfrangalhando nossas certezas, sacudindo o chão, derrubando ocas, incendiando florestas, esgoelando em desespero para que prestássemos atenção no fato de sermos nós, os humanos, a doença a definhar nossa Terra.
Mas desse discurso estamos exauridos. Por isso, muitos fechamos ouvidos e olhos para a sociedade a fim de focar num buraco muito mais interessante: o próprio umbigo. "Próprio, específico, privativo". Daí desdobramos a essência da palavra "peculiar" não só enquanto adjetivo para um ano que, mais cedo ou mais tarde, será dissolvido na rotina para ser ressuscitado nos livros de História, mas também para definir algo que foi a grande preocupação daqueles que se detêm sobre a palavra do último artigo (economia): propriedade; patrimônio; aquilo que é 'meu', da 'minha' família e de mais ninguém.
Enraizada no latim, 'peculiaris' é aquilo que advém de 'peculium'. O pecúlio, por sua vez, é nada menos que o produto que é de minha propriedade, pertence a mim. A curiosidade fica para o fato de que, à época em que essa expressão fora cunhada, o principal produto que fazia de alguém proprietário de alguma coisa eram os rebanhos - especialmente de ovelhas. Daí a peculiaridade da palavra: em latim, 'pecus', 'pecoris' são os termos que definem esse animal; tanto é que no italiano manteve-se a palavra "pecora" (lê-se 'pécora') para o quadrúpede que nos oferece lã, carne, leite e couro. Bicha valiosíssima essa tal de ovelha, não é mesmo?
É claro que, com a evolução da palavra, seu significado acaba se perdendo pelas lambidelas das línguas e, por essa e outras razões sociais, econômicas e linguísticas, adotamos novos vocábulos mais eficazes para nos referirmos a propriedade, afinal de contas, quem precisa criar ovelhas para ter acesso aos manufaturados que elas proporcionam em um mundo globalizado, conectado, tecnológico?
Hoje, pecúlio se traduz em números. Cabeças de gado, motores dos carros, capitanias hereditárias se escondem em cifras; cifras essas que motivam o cidadão de 'bem' - que, infelizmente, já fora mais peculiar - a seguir em frente com seu cabresto frouxo e tapa olho firme, destruindo relações, comunidades e toda uma sociedade com palavras ofensivas tal qual uma máquina colheitadeira frenética, alheia às necessidades do solo para replantio.
Sem perceber a terra seca e as ovelhas magras, cavamos próximos anos peculiares, até que o significado da palavra acabe por se tornar cada vez mais distante de "único" e próximo a "tanto faz".
LETÍCIA FLORES, É professora de Língua Portuguesa, revisora e escritora em Rio Preto. Escreve quinzenalmente neste espaço às terças-feiras