Deixamos a casa onde moraram, por muitos anos, dona Maria Dolores e seu marido, Juan Carlos, no sítio Nuestra Señora de Luján, a padroeira da Argentina, naquela noite de sábado.
Eu não via a hora de chegar à casa para abrir o calhamaço com mais de quinhentas páginas do diário de minha amiga. Meu cumpadi Dimirsu — Edmilson Zanetti — também estava curioso para ler o conteúdo. Assim que chegamos, desfiz o laço que prendia as folhas e, qual não foi minha surpresa, tinha deixado a carta endereçada a mim:
"Estimado señor.
"Quando estiver lendo esta carta, é sinal de que já não estarei mais por aqui. Devo ter partido para junto do meu amado Juan Carlos. Conhecia no Brasil somente duas cidades, São Paulo e Rio de Janeiro onde nos apresentamos algumas vezes. Eu e meu marido não imaginávamos que poderíamos encontrar uma cidade tão acolhedora e tão bela pelo interior do estado. Rio Preto nos recebeu de braços abertos. Aqui fomos felizes à medida do possível.
Desejo agradecer ao senhor pelo carinho com que nos tratou durante todos esses anos e, a pedido nosso, nos mantinha longe de olhos curiosos. Sim, não desejávamos que viessem a saber que aqui nesse sítio moravam dois ex-prisioneiros argentinos. E que eu era uma das quatorze de Las Madres de la Plaza de Mayo. Sabíamos que, se a imprensa nos descobrisse, nosso sossego acabaria. Confiávamos no senhor e na sua discrição.
Lembro como se fosse agora, naquele longínquo ano de 1997, quando nos encontramos na estação do Metrô, o senhor, fardado, me ajudou a carregar minhas malas.
Naquela época, fazia pouco mais de dez anos que havia sido maltratada por homens do Exército argentino. Juan e eu nunca fomos guerrilheiros lutando contra o governo de Jorge Rafael Videla e seus militares. Por pura intriga, fomos denunciados.
Certa noite, quando estávamos nos apresentando no maior teatro da América do Sul, o Colón, com 2.487 lugares, alguém nos disse na coxia que na plateia tinha dois homens perguntando por nós. Como não devíamos nada, ficamos tranquilos. Terminado o espetáculo, fomos aplaudidos de pé por vários minutos. Vieram até nós dois elementos que nos conduziram até uma delegacia, acusados que fomos de terroristas. Meu marido foi para um presídio nos arredores de Buenos Ayres e eu levada, encapuzada, para um presídio feminino. Nunca soube onde estava.
Depois de dois meses encarcerada, descobri que estava grávida. Fiquei apavorada. Tinha ouvido falar que, quando os bebês nasciam dentro de presídios, eram tirados de suas mães e dados para adoção, invariavelmente para autoridades. Quando descobriram meu estado, mudaram o tratamento comigo. Fui transferida de cela e passei a ser cuidada por médicos em enfermarias. Aprendi aqui com os brasileiros que quando a esmola é muita o santo desconfia.
Quando meu Leon nasceu, foi arrancado dos meus braços e nunca mais o vi. O senhor pode mensurar minha dor? Bem, paro por aqui, o restante do depoimento está em meu diário, agora em seu poder."
Gracias,
Maria Dolores.
Jocelino Soares, Artista plástico; diretor da Casa de Cultura Dinorath do Valle; membro da Academia Rio-pretense de Letras e Cultura