Sobre a recente aprovação da legalização do aborto na Argentina, entendo que há uma diferença importante entre ser contra ou a favor do aborto e ser contra ou a favor da descriminalização do aborto. A questão do aborto em si é centro de inúmeras discussões. Ainda que possamos determinar quando a vida começa, o foco na vida do feto ou na vida da mãe, o tratamento do feto como parte da mãe ou como um cidadão em potencial, portador de direitos tem se alternado a depender dos momentos históricos. Todos os aspectos - religiosos, culturais, científicos, sociais - que permeiam essa discussão não deixarão de ser controversos tão cedo.
Já a questão da descriminalização do aborto é de outra natureza. Parafraseando Voltaire - posso não concordar com o que você fala, mas hei de lutar eternamente pelo seu direito de falar -, posso não concordar com o aborto, mas hei de lutar pelo direito de decisão das mulheres. Primeiro porque hoje, na nossa sociedade, já temos um grupo que pode decidir e o que determina esse poder de decisão é uma questão financeira. Você sabe quanto custa um aborto em uma clínica particular, com sala de espera, sem que a polícia seja chamada, com médico, enfermeira, vacina e um procedimento que dura mais ou menos 15 minutos com um risco baixíssimo para a mulher? Em média 7 mil reais. Isso significa que se você decidir fazer um aborto ou apoiar alguém da sua família a fazer, esse é o preço da segurança. E é óbvio que você pode também decidir não fazer. Por isso, fica claro que a possibilidade de decidir tem esse preço, porque se você não tem esse dinheiro, ou você não faz, ou se decidir fazer terá que recorrer a métodos alternativos ou ilegais correndo altos riscos.
A criminalização do aborto é também uma questão de gênero, porque se diz do crime do aborto no corpo feminino, mas nada se diz do aborto masculino, já que o homem - "pai" do feto - tem a opção de não levar essa gravidez para frente, ou pelo menos, não leva-la na sua frente, visto que ele pode simplesmente dar as costas para a situação. A criminalização recai somente sobre as mulheres - os homens, no limite, sempre podem sumir -, e recai sobre uma parcela das mulheres - aquelas que não têm 7 mil reais.
Você tem todo o direito de ser contra o aborto e tomar as decisões que lhe dizem respeito em concordância com suas convicções, mas não é contraditório e você pode e deve juntar-se na luta para que todas as mulheres - todas, principalmente aquelas que não têm 7 mil reais - possam também tomar decisões em relação a esse tema, sem serem consideradas criminosas por isso. Mas em sendo contra, revise também sua posição em relação às crianças que nascem. Por exemplo, sua família se organiza para que sua empregada doméstica possa ir na reunião de pais da escola dos filhos dela? Como as mulheres grávidas são tratadas na sua empresa? Não são nem contratadas ou são dispensadas assim que a lei permite? Sua empresa tem algum convênio com creches? Há pouco tempo um grupo contra o aborto acampou em frente a um hospital público em uma capital. Não vimos nenhum acampamento em frente às clinicas particulares que fazem o mesmo procedimento. A indignação é só com as mulheres que não tem 7 mil reais para irem nessas clinicas e por isso o acampamento foi feito em frente a um hospital público?
Resolver fazer ou não um aborto é uma decisão, difícil decisão. As opções para essa decisão dependerem da condição financeira é uma injustiça, mais uma injustiça.
Monica Abrantes Galindo
Professora da Unesp, membro do CDINN (Coletivo de Intelectuais Negras e Negros)