A recente descriminalização do aborto na Argentina, mais do que indicar uma tendência mundial, reacende importante discussão na comunidade jurídica brasileira. Segundo a ONU, no mundo são realizadas cerca de 25 milhões de interrupções de gravidez precárias a cada ano; o Uruguai assistiu às mortes das gestantes em decorrência do procedimento despencarem de 37% (entre 2001 e 2005) para 8% (entre 2011 e 2015), com a descriminalização em 2012; cerca de 500 mil mulheres interrompem a gravidez por ano no Brasil e a cada 2 dias, uma mulher morre em decorrência de procedimentos malfeitos.
Ainda que insistam em negar, "toda vida é sagrada" disse o Papa Francisco na tradicional Oração do Angelus, há alguns anos, conclamando a multidão a se lembrar das palavras de Madre Teresa de Calcutá, "a vida é beleza, admire-a, defenda-a". A admiração dos cristãos pelo Sumo Pontífice não é de hoje, principalmente por sua postura progressista, como no episódio em que autorizou os padres a perdoarem as pessoas por provocarem o fim de uma gravidez, o que antes era permitido somente aos bispos, algo tido como revolucionário no ambiente católico. Mas é possível defender a vida humana sendo favorável à descriminalização do aborto?
O direito começa por assumir, ao menos em parte, o significado que a dignidade tem recebido do mundo religioso cristão e da filosofia moral. "A dignidade não tem preço", diria o festejado prussiano Immanuel Kant. Há algo mais valioso no mundo do que a dignidade humana? Se desde o ponto de vista ético a dignidade é sagrada e inviolável, do ponto de vista jurídico é um bem que pode ser lesionado, merecendo proteção, preocupação esta mais do que comprovada nas diversas cartas constitucionais de um pós-guerra farto de atrocidades incalculáveis.
Nosso ordenamento jurídico autoriza o abortamento praticado por médico em três situações distintas: no caso de risco de vida da gestante; de gravidez precedida de estupro e no caso de anencefalia fetal. O saudoso jurista pernambucano Aníbal Bruno adverte: "no curso das duas guerras, os inúmeros atos de violência sexual praticados por soldados inimigos nos países invadidos, deram ao problema uma dimensão particular, fazendo-o sair do domínio do interesse privado para o do interesse público. Foi então legitimada a intervenção abortiva nos casos de concepção resultante de violência".
A autonomia procriativa a partir da Conferência Internacional de Direitos Humanos de Teerã (1968) ganhou relevância com a assunção dos direitos reprodutivos como uma questão de direitos humanos. Não se quer, aqui, exortar ou justificar o ato de abortar, pois debater o tema para uma considerável parcela das brasileiras implica em falar de dor, seja em razão do imprevisto ou do indesejado, seja pelo abandono, o estigma, a carência de recursos, a ausência de orientação, a clandestinidade e a insegurança, as complicações e mutilações experimentadas. Enfim, muitas lições precisam ser revistas, dentre elas, a educação sexual nas escolas, desde cedo, merece especial atenção, assim como a implementação de políticas públicas efetivas visando a prevenção da gestação. Manter típica (criminosa) a prática do aborto fundada em padrões de ordem moral acarreta a insustentabilidade da norma, o que torna a punição extremamente questionável, pois capturado e fragilizado o direito pela própria moral, ferindo de morte a laicidade como garantia de independência desse mesmo direito. O amadurecimento da discussão é inevitável e precisa acontecer o quanto antes.
Paulo Younes, Advogado, relator-Presidente da XI Turma do Tribunal de Ética e Disciplina OAB/SP