O virologista Flávio Fonseca, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e presidente da Sociedade Brasileira de Virologia, lembra que quando era pequeno seu pai tinha um Fusca. Com estradas esburacadas no interior de Minas Gerais, fazia determinado percurso em três horas e meia. Hoje, um carro mais moderno faz o mesmo trajeto em duas horas e quinze.
"Ninguém quer voltar a andar devagar. Com a ciência é a mesma coisa. A biotecnologia avançou demais, então é natural que a gente tenha uma aceleração dos processos de desenvolvimento de vacina. Todas foram aceleradas. É claro que a emergência que a gente vive causou uma corrida ainda mais intensa, porque o que a gente vive não tem precedente nos últimos cem anos", diz o especialista.
A analogia é necessária porque um dos principais argumentos dos grupos antivacina com relação aos imunizantes contra o coronavírus é que eles foram desenvolvidos muito rapidamente.
Especialistas, no entanto, ressaltam que não é bem assim. Os coronavírus foram identificados na década de 1960. Houve outras epidemias provocadas por eles, embora não em proporções tão grandes como a atual. Assim, já existiam estudos para desenvolver vacina. Além disso, o mundo inteiro se debruçou sobre a questão para descobrir a fórmula que impedisse o contágio e as formas graves de infecção por coronavírus. Muito dinheiro esteve - e está - envolvido nesses estudos.
Dinheiro este que o Brasil não investiu. As vacinas Moderna, Oxford/AstraZeneca, Pfizer e Sputinik V tiveram investimentos dos Estados Unidos, Alemanha e Rússia. Em Rio Preto, foram testadas a Coronavac (China) e a Janssen (braço farmacêutico da Johnson & Johnson, dos Estados Unidos). O Brasil também integrou os testes de Oxford.
O que se percebe, no entanto, é que o País não é produtor de nenhuma tecnologia, dependendo de outros neste momento, o que atravanca a vacinação de quem vive por aqui. Na Coronavac, por exemplo, é preciso que o Instituto Butantan tenha acesso à fórmula completa do imunizante, o que ainda não ocorreu. Também se depende essencialmente de insumos da China para produzir a Coronavac e a AstraZeneca, que será fabricada pela Fiocruz.
Para o virologista Flávio Fonseca, o País precisa aprender a lição. "O Brasil não tem a tradição de investir em ciência, ele prefere importar a ciência pronta", afirma. "E, de repente, quando tem uma demanda global como esta, o preço que se paga por isso é o que estamos pagando, você vai para uma fila. Pergunta se Inglaterra e China estão sofrendo com o mesmo problema. Não, porque são países que passaram a investir pesadamente em ciência e tecnologia."
O preço a ser pago são as vidas. Por dia, estão morrendo mais de mil pessoas no Brasil. Enquanto países como Inglaterra e Estados Unidos (este inclusive já testando imunizantes até em crianças) iniciaram suas campanhas, o Brasil apenas engatinha, tendo começado nesta semana a proteger sua população, já com o risco de parar, pois havia apenas cerca de 6 milhões de doses liberadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para uso emergencial. Além da falta de insumos da China, relações exteriores fragilizadas com a Índia atrasaram a entrega das vacinas AstraZeneca.
"As vacinas quando ficarem prontas como estão ficando vão ser direcionadas para os parceiros, o que é natural. E quando eu falo em investimento em ciência não é só na pandemia, tem que ser perene para quando surgir uma pandemia você estar pronto para dar uma resposta rápida", reforça Fonseca. "Os laboratórios estavam sucateados, não havia investimento, as equipes estavam desmanteladas. O Brasil não investe em ciência", pontua. Ele estima que qualquer imunizante desenvolvido com tecnologia local esteja pronto apenas em 2022.
Segundo Ergon Culler, pesquisador do Grupo de Estudos em Tecnologia e Inovações na Gestão Pública (Getip) da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, em artigo publicado em novembro, em todo o País as universidades públicas foram responsáveis por pelo menos duas mil iniciativas contra os efeitos da pandemia. Houve, no entanto, cortes de 32% em 2021 no orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), se comparado a 2020. A perda maior é de R$ 4,8 bilhões para o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), além de cortes nos valores de bolsas que são pagas aos pesquisadores.
Segundo Fonseca, não é a primeira vez que os laboratórios travam uma batalha para desenvolverem uma fórmula que impeça uma infecção. O mesmo ocorreu com a HIV e com a dengue, vírus para os quais ainda não existe imunizante. "O que aconteceu na Covid é que se acentuou a quantidade de laboratórios focados em um único objetivo comum."
Fonseca reforça que, neste momento, as vacinas são uma importante ferramenta para barrar a pandemia e que a melhor é a que vier primeiro. Ele lembra da varíola, a única doença da humanidade que pode ser erradicada do mundo, o que só foi possível graças a uma campanha mundial de vacinação. Estima-se que o vírus tenha matado entre 300 e 500 milhões de pessoas no século 20.
O médico reforça que apenas o imunizante tem esse poder, o de controlar um grande surto. Ele pontua que os grupos antivacina surgem a partir de um "esquecimento" do sofrimento que grandes epidemias como sarampo e poliomielite são capazes de provocar. "As pessoas se esquecem. Você passa a não dar o devido valor porque você não está mais acostumado a lidar com aquela doença, se você não teme aquela doença você não tem porque dar importância a ela ou à vacina que foi responsável por erradicá-la."