No ano de 1970, o Diário da Região publicou por um período historietas ilustradas sobre personagens do Velho Oeste... mocinhos e bandidos medindo forças, em duelos não raramente trágicos. Um desses personagens era Wild Bill Hickok, vulto histórico que lutou no exército da União durante a Guerra Civil Americana. Mas ele também foi um sujeito controverso, após se tornar xerife nos territórios de Kansas e Nebraska e se envolver em vários tiroteios notórios. Meio herói e meio vilão, acabou morto durante um jogo de pôquer num saloon em Dakota, em agosto de 1876.
É comum a má fama preceder muitas pessoas. Na dúvida, não raro, julgam antes, condenam antes e sobre alguns recai um rótulo que não necessariamente condiz com a realidade. Também não raro, paga-se um alto preço por isso.
Há um século, em 1920, uma epidemia de varíola atingiu Rio Preto, levando a Prefeitura a decretar o "Isolamento Municipal". A exemplo do que vivemos atualmente com a pandemia de coronavírus, naquela época havia quem contestasse as medidas sanitárias adotadas por achá-las rígidas demais.
A tensão em um lugar que já havia sido atingido pela gripe espanhola foi inevitável, com denúncias, acusações e dissidências. Naquele momento delicado, dois personagens destacaram-se: os médicos José Mendes Pereira (que em 1924 viria a ser um dos fundadores da então Casa de Saúde Santa Helena) e José Gonçalves Gomyde. Ambos atuaram de maneira firme no isolamento, sem cederem a pressões ou a julgamentos se eram vistos como heróis ou vilões.
Consta que no dia 1º de fevereiro de 1921, a Câmara Municipal autorizou o então prefeito Presciliano Pinto a pagar uma gratificação de 1:000$000 (um conto) a Pereira e de 200$000 (duzentos mil réis) a Gomyde pela atuação dos dois no atendimento prestado aos pacientes durante aquela epidemia. No final, superadas as controvérsias, o bom senso prevaleceu.
É possível perceber, assim, que a linha que divide vilões e mocinhos nem sempre é muito nítida. Um prato cheio para construção de metáforas e histórias em que estes dois mundos - do bem e do mal - em algum ponto colidem. Quem afinal é o herói? Qual acontecimento é capaz de trazer a verdade à tona, de derrubar as máscaras, de revelar a índole de alguém?
O universo caipira é recheado de modas que enfocam essa dualidade. Exemplo clássico ocorre em Boi Soberano. A letra do compositor e poeta rio-pretense (radicado em Tanabi) Izaltino Gonçalves, 91 anos, fala de um típico transporte de boiada com destino a Barretos. Eram 600 bois cuiabanos - também chamados de pantaneiros, rústicos e resistentes a intempéries (estiagens, inundações etc.) - e entre eles destacava-se um pela sua má fama, por ter já causado "diversos danos", por ser "criminoso" e por ser "leviano nas guampas".
Era, é claro, o boi Soberano. Quando a comitiva entra em Barretos, o cenário perfeito para uma tragédia se estabelece. A boiada "estoura", tendo à frente o tal animal "afamado". As pessoas gritam, o comércio fecha as portas. Uma criancinha que brincava na rua, ao ver o tropel, desmaia de susto. O Soberano estaca em frente ao menino e começa a rebater com o chifre os outros bois, evitando que ele seja pisoteado. Ao ver aquela cena, o pai se atira no chão temendo pela vida do filho e jura de morte o Soberano, caso algo aconteça ao pequeno.
No final, ao ver que o boi então malvado havia salvado a criança da morte certa, o pai acaba por dar outro destino ao animal. Movido por imensa gratidão, vendo o filho são e salvo, compra o bruto de má fama. "Esse boi salvou meu filho, ninguém mata o soberano".
Sem fronteira
Um tema tão instigante que não conhece fronteiras, mesmo onde a música caipira não é exatamente a expressão cultural predominante. "Já encontrei pessoas entoando modas raízes nas mais diferentes regiões do País, até mesmo na Amazônia", conta o professor, escritor e pesquisador rio-pretense Romildo Sant'Anna, que acaba de lançar a 4ª edição de "A Moda é Viola - Ensaio do cantar caipira", obra que é o maior referencial do cancioneiro de alma matuta, fonte múltipla de estudos e que tem exatamente no "Boi Soberano" sua maior inspiração.
Professor Romildo explica que as músicas que exaltam o animal refletem essa transferência dos atos de coragem e valentia para o boi em detrimento do próprio caipira. "Os protagonistas caipiras são geralmente encolhidos, retraídos, parece que premeditadamente imbuídos da derrota que os apavora e desanima, e de um perene sentimento trágico da vida. Isto explica o fato de serem mais frequentes no cantar caipira as sagaranas de um herói boi do que do herói gente."
Um tema que, de fato, não conhece fronteiras. "Boi Soberano" é capaz de atrair atenção até mesmo de quem, à primeira vista, absolutamente nada tem a ver com o universo caipira, a exemplo do ilustrador Gustavo Pelissari, um capixaba de Vitória. Professor na escola de artes Arcane, na capital do Espírito Santo, ele se encantou pela história contada na música a ponto de levá-la para uma de suas aulas de desenho ao vivo, no Youtube. "É uma canção especial, muito importante pra mim e que me toca", diz o artista, especializado em dar vida a heróis e vilões em HQs, animes e mangás. Dessa forma, o boi Soberano, um autêntico símbolo caipira, é um pouco pop também.