O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo determinou, em caráter liminar, a suspensão da ação penal contra 31 ex-estudantes da Faculdade de Medicina de Rio Preto (Famerp) réus por trote violento a pelo menos 50 alunos novatos em 2014. A decisão se baseia em um apelo da defesa do réu Guilherme Vasconcelos Silveira, que alega que a denúncia do Ministério Público é "genérica" e "vaga". A decisão suspende a audiência do dia 22 de março. O "congelamento" fica em vigor pelo menos até o julgamento do mérito do habeas corpus, que pede o arquivamento da ação.
O caso está em andamento na 3ª Vara Criminal de Rio Preto, desde maio de 2014. Em outubro de 2017, o promotor José Heitor dos Santos ofereceu denúncia contra os ex-estudantes por "prática continuada de crimes de constrangimento ilegal".
A denúncia foi proposta três anos depois da repercussão do trote, pelo qual o estudante Luiz Fernando Alves acusou os veteranos de agredi-lo e urinar sobre ele. Há relatos também de uma outra testemunha, que afirmou à polícia que, logo nos primeiros dias de aula, um grupo de alunos do 6º ano entrou na sala dos novatos, dizendo que as alunas calouras seriam chamadas de "biscates, "vagabundas" e "prostitutas". Segundo o MP, os réus, na condição de veteranos, submeteram os calouros "às mais variadas situações de violência e humilhação" com o "pretexto de aplicar-lhes o chamado 'trote'". Os casos considerados pela promotoria como "extremamente graves e repulsivos" chegaram ao "Disque Direitos Humanos DDH 100".
Como o crime possui pena mínima igual ou inferior a um ano, o MP ofereceu uma proposta de suspensão condicional do processo para que os réus trocassem a pena pelo monitoramento da Justiça, entre dois e quatro anos, além do pagamento de multa em prol de entidades carentes em valores que variavam de R$ 15 mil a R$ 50 mil para cada um de acordo com a gravidade da participação dos ex-estudantes. O valor total passaria de R$ 1 milhão.
A proposta do MP, que incluía a proibição de frequentar determinados ambientes, como bares, prostíbulos e casas de jogos de azar, seria apresentada pela Justiça em audiência marcada para fevereiro do ano passado. No entanto, 13 dos réus rejeitaram e entraram com recurso no TJ. Em janeiro de 2018, um dos pedidos de liminar foi acatado pelo Tribunal para suspender, pela primeira vez, o processo e consequentemente a primeira audiência. Com isso o caso ficou parado na Justiça de Rio Preto até o julgamento do último habeas corpus. Nesta primeira leva de recursos, julgados no ano passado, o TJ negou todos os pedidos até que a Justiça local realizasse a audiência.
No entanto, um novo recurso foi proposto e, mais uma vez, antes de ouvir réus, testemunhas, Ministério Público e defesa, o TJ decidiu acatar o novo recurso que pede o arquivamento do processo.
Desta vez, os advogados Antônio Carlos Suppes Dorgal de Andrada e João Carlos Gonçalves Krakauer Maia alegaram que a denúncia do MP é genérica e vaga. "Pode-se ler e reler a denúncia, e NADA, nada se encontrará em relação ao paciente!", afirma trecho do desembargador Marco Antônio Pinheiro Machado Cogan. Além da liminar, Cogan determinou ainda um prazo de 48 horas para que a juíza da 3ª Vara Criminal Carolina Marchiori Bueno Cocenzo enviasse todas as cópias e a senha do processo.
A reportagem tentou falar com os dois advogados, mas não conseguiu contato com Antônio Carlos e o escritório de João Carlos não atendeu. O promotor José Heitor estava fora do Fórum nesta segunda-feira, 11, e também não foi encontrado. Promotor substituto, Gustavo Miazaki não se manifestou.
Entenda como ocorreu o trote e como está o processo
- Março de 2014 - veteranos do curso de medicina da Famerp organizam a festa do Bixo, quatro dias em que alunos dos anos finais da graduação recepcionam os novos estudantes
- Março de 2014 - um aluno de 22 anos foi à polícia e denunciou chutes, socos, humilhações e ameaças durante a festa. Ele também levou o caso para a direção da Famerp. Ele registra boletim de ocorrência na Polícia Civil e volta para a casa da família em Minas Gerais
- Após a denúncia, o estudante pediu transferência para a UFMG.
- Outros calouros (alunos novatos) relatam abusos de veteranos e violência
- Maio 2014 - A Polícia Civil instaura inquérito para investigar as denúncias e cerca de 50 alunos são identificados como vítimas
- Durante a apuração dos investigadores, a polícia identificou pelo menos 31 estudantes acusados pelas testemunhas como participantes da organização do trote violento
- De 2014 a 2017 - O prazo para conclusão do inquérito foi adiado em vários momentos
- Outubro 2017 - O promotor de Justiça José Heitor dos Santos oferece denúncia contra 31 ex-alunos
- O promotor oferece suspensão condicional de processo, já que o crime prevê pena mínima de um ano ou menos, e propõe a troca da pena por monitoramento da Justiça por até quatro anos e multas de R$ 15 mil a R$ 50 mil, que passaria de R$ 1 milhão no total
- 13 dos réus rejeitaram a proposta e entraram com recurso no TJ
- Janeiro 2018 - Com a primeira audiência agendada, o Tribunal acatou recurso de uma das rés e suspendeu o processo temporariamente
- Dezembro 2018 - Depois de julgar e negar todos os 13 habeas corpus, a Justiça de Rio Preto marca nova audiência do caso para 22 de março de 2019
- Fevereiro de 2019 - Uma nova liminar pedindo o arquivamento do caso, proposta por um dos réus e deferida pelo TJ, congela o desfecho da ação penal mais uma vez. Na liminar, a defesa alega que a acusação é "genérica" e "vaga". Com isso, a audiência de março foi cancelada
- Próximos passos - Até o julgamento do mérito do recurso da liminar, não há prazos para retomada do processo na Justiça local
Fonte: Tribunal de Justiça e Ministério Público
Na ocasião da denúncia do trote violento, em 2014, a Famerp repudiou os casos retratados pelos alunos calouros durante os quatro dias da "Festa do Bixo", realizada em uma chácara do Jardim Aclimação. Em resposta sobre quais iniciativas a faculdade tomou para combater os casos, a assessoria de imprensa destacou algumas ações que incluem a partição do Ministério Público.
De acordo com a Famerp, todo início de ano a instituição realiza a chamada "Semana de Integração". A proposta é receber os novos alunos para mostrar o campus, os laboratórios, as salas de aula, além de realizar palestras. "O cronograma inclui ações solidárias e culturais, que têm o intuito de possibilitar a integração entre os novos estudantes e, ao mesmo tempo, ajudar quem precisa", afirma a nota.
Entre as iniciativas está a doação de sangue, que reúne calouros e veteranos. O grupo também participa de um mutirão para arrecadar produtos de higiene pessoal para entidades carentes. Sobre a conscientização contra a violência dos trotes realizados pelos próprios alunos, a faculdade informou que o MP participa do trabalho.
"O Ministério Público participa ativamente das ações da faculdade e ministra palestra aos alunos sobre a proibição de trote. Em toda nossa comunicação com alunos no início de ano, passamos a mensagem de que trote é crime", finalizou. (FP)